A Questão Da Água De Lastro
Por Prof. Dr. Fábio Campos
Edição Nº 31 - junho/julho de 2016 - Ano 6
A qualidade da água bruta é resultante de fenômenos naturais em decorrência de seu ciclo biogeoquímico, mas sofre influência em função do lançamento de despejos domésticos e industriais gerados pelas atividades humanas (von SPERLING, 1995)
A qualidade da água bruta é resultante de fenômenos naturais em decorrência de seu ciclo biogeoquímico, mas sofre influência em função do lançamento de despejos domésticos e industriais gerados pelas atividades humanas (von SPERLING, 1995).
Tais despejos apresentam-se como grave ameaça à vida aquática, uma vez que provocam o aporte de uma série de substâncias potencialmente poluidoras que afetarão o equilíbrio do meio ocasionando a alteração de sua natureza. O saneamento é uma das formas de contribuir para a manutenção do equilíbrio entre o meio ambiente e as diversas atividades antrópicas com vistas à preservação de recursos e elementos indispensáveis à vida humana (CARVALHO e OLIVEIRA, 2002).
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), saneamento básico é o controle de todos os fatores do meio físico do homem, que exercem ou podem exercer efeitos nocivos sobre o bem estar físico, mental e social dos indivíduos. Envolve, segundo o Ministério das Cidades, o conjunto de ações técnicas e socioeconômicas, entendidas fundamentalmente como de saúde pública, tendo por objetivo alcançar níveis crescentes de salubridade ambiental, por meio de investimentos públicos em políticas de controle ambiental na infraestrutura das cidades.
O Brasil apresenta-se em um quadro deficitário de obras que universalizem a oferta de saneamento a toda a sua população, entendo tais demandas como acesso a água potável, coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos urbanos.
Entretanto, deslocando-se o foco para outros setores sociais menos midiáticos, o cenário pode ser até mais alarmante dado o desconhecimento, sobretudo por parte da população, dos problemas e consequências advindos da falta de instrumentalização no controle da poluição, como é o caso do lançamento de Água de Lastro nos portos brasileiros.
A Água de Lastro é um artifício utilizado em navios para garantir seu equilíbrio quando este se encontra operando sem o transporte de cargas, tornando-o "mais leve" e, portanto, mais instável frente ao movimento do mar e aos impactos com ondas. O lastro pode ser definido como qualquer material usado para aumentar o peso e/ou balancear um objeto (PEREIRA e VALOIS, 2009).
Nessa situação, o uso de água marítima ou fluvial, captado pelos navios, tem por objetivo garantir sua estabilidade e sua segurança operacional enquanto navegando e durante o processo de carga e descarga (SERAFIN e HENKES, 2013).
Sendo assim, de acordo com a necessidade, o navio encherá seus porões com água marinha ou fluvial, retendo-a até o momento quando fosse carregado novamente para que, então, pudesse dispensá-la ao ambiente. A figura 1 ilustra didaticamente essas manobras.
A presença da Água de Lastro permitirá ao capitão do navio ter condições seguras no tocante à estabilidade, manobra (imersão da hélice), governo (direção) e distribuição de tensões (ação de forças internas e externas) no casco do navio (PEREIRA e VALOIS, 2009).
A captação e o lançamento da Água de Lastro se fazem por um complexo sistema de bombas, válvulas e tubulações em seu interior que distribuem a água entre tanques existentes ou diretamente nos porões de carga. Atualmente, devido a normas de segurança, as embarcações passaram a contar com tanques específicos para a Água de Lastro e compartimento para as cargas. A figura 2 mostra um navio "deslastrando".
Entretanto, um problema ambiental encontra-se atrelado ao uso da Água de Lastro, de acordo coma Organização Marítima Internacional (IMO), estudos realizados em diversos países demonstram que muitas espécies de bactérias, plantas e animais podem sobreviver na Água de Lastro e nos sedimentos transportados pelos navios, mesmo após viagens com vários meses de duração (Resolução A.868(20) – IMO, 1997).
Embora haja outros meios responsáveis de transferência de organismos nas áreas marítimas e fluviais, a Água de Lastro está entre as quatro mais importantes ameaças aos oceanos do mundo, juntamente com as fontes terrestres de poluição marinha, exploração excessiva dos recursos biológicos do mar e alteração do habitat marinho (CARMO, 2006).
A possibilidade da Água de Lastro descarregada causar danos ao ambiente foi reconhecida não apenas pela IMO, mas também pela Organização Mundial de Saúde, uma vez que há relação entre os organismos eventualmente introduzidos e a propagação de doenças epidêmicas (Resolução A.868(20) – IMO, 1997).
A bioinvasão se dá quando a Água de Lastro captada no porto doador (porto de origem) e a água do porto receptor (porto de destino) apresentam características físico-químicas semelhantes, como nível de salinidade, oxigenação, luz, fontes de alimentos etc.., favorecendo a adaptação das espécies alienígenas neste novo ambiente (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 1996 apud PEREIR, 2012). De acordo com SANTOS e LAMONICA (2008), a teoria sugere que 10% das espécies introduzidas se estabeleçam e 10% destas poderiam causar algum dano ao equilíbrio do ecossistema.
Estima-se que pelo menos 10 bilhões de toneladas de Água de Lastro sejam transferidas em todo o mundo, sendo no Brasil cerca de 40 milhões de toneladas por ano; um único navio cargueiro pode exceder 150.000 toneladas de Água de Lastro (SERAFIN e HENKES, 2013; SANTOS e LAMONICA, 2008).
Os danos ao meio ambiente oriundos das invasões por meio da Água de Lastro são confirmados através de várias décadas de pesquisas e registros de prejuízos ambientais causados pelas espécies exóticas trazidas pelos tanques de lastro dos navios, tanto no Brasil quanto no Exterior (PEREIRA e VALOIS, 2009).
Ao contrário de outras formas de poluição marinha, como derramamento de óleo, em que ações mitigadoras possam ser empregadas e o ambiente, graças a resiliência que lhe seja peculiar, consiga se recuperar, a introdução de espécies exóticas à biota aquática é, na maioria das vezes, irreversível e não perceptível em curto prazo, o que dificulta as ações para minimizar danos e conter seu avanço e prejuízos (ZANELLA, 2015).
No que tange o panorama global, de acordo com a IMO, as espécies aquáticas invasoras mais preocupantes são os mexilhões dourados e zebra, caranguejo verde, Vibrio cholerae, estrela do mar do pacífico norte, alga marinha asiática, água viva, comb jelly, dinoflagelados, e espartina.
O Brasil possui uma zona costeira com uma das maiores biodiversidades do mundo, formando o que se tem denominado de Amazônia Azul, tornando-se, portanto, um dos países com maiores chances de sofrer uma bioinvasão com consequências inestimáveis (ZANELLA, 2015).
Espécies como o "Limnosperna fortunei", conhecido popularmente com mexilhão dourado, vêm trazendo diversos prejuízos não só ao Brasil, mas também a diversos países. Tal organismo foi trazido da China e sudeste Asiático e seu estabelecimento, em nosso ecossistema, vêm provocando redução de diâmetro e obstrução de tubulações das companhias de abastecimento de água potável, além do entupimento de filtros dos sistemas de arrefecimento das turbinas no setor de geração de energia.
O impacto mais importante provocado por esse mexilhão foi junto a Usina de Itaipu (SANTOS e LAMONICA, 2008). A figura 3 ilustra o transporte desse animal.
Segundo o Great Lakes Environmental Research Laboratory - NOAA, apud PEREIRA (2012), estima-se que na região dos Grandes Lagos são gastos anualmente, em torno de US$ 200 milhões para conter os impactos causados pelo Mexilhão Zebra.
Outra espécie, o Siri Bidu, originário dos oceanos Índico e Pacífico, chegou ao Brasil provavelmente na Água de Lastro colhida no Caribe; os primeiros registros ocorreram nos estados da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraná. Sem valor comercial, ele está substituindo as populações de caranguejos que tem importância pesqueira, causando sérios prejuízos às comunidades de pescadores (MIRANDA, 2010 apud SERAFIN e HENKES, 2015).
Nativo da costa oeste dos EUA, o Comb Jelly infestou o Mar Negro na década de 1970, sendo o responsável pelo colapso da indústria da pesca e da anchova na região. A figura 4 ilustra esses dois organismos.
De acordo com estudos exploratórios para identificação e caracterização de agentes patogênicos em Água de Lastro, realizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em 2002, num montante de 99 amostras coletas ao longo de 9 portos brasileiros, confirmou-se a presença de organismos patogênicos que podem causar agravos à saúde pública.
Neste estudo, foram detectados todos os indicadores microbiológicos pesquisados, tendo se comprovado a presença de bactérias marinhas cultiváveis em 71% das amostras analisadas; evidenciando o transporte de víbrios (31%), coliformes fecais (13%), Escherichia coli (5%), enterococos fecais (22%), Clostridium perfringens (15%), colifagos (29%), Vibrio cholerae 01 (7%) e Vibrio cholerae não-01 (23%) (ANVISA 2002).
No que diz respeito ao Vibrio cholerae, o Brasil alcançou o topo de casos em todo o continente, nos anos de 1993 e 1994 e mais em 1999, no litoral do Paraná (SANTOS e LAMONICA, 2008).
Diante dessa problemática de dispersão de espécies exóticas, a IMO desde 1973, tem demonstrado preocupações com a Água de Lastro, sendo que em assembleia realizada em 1997, adotou por meio da Resolução A.868(20), as Diretrizes para o controle e gerenciamento de Água de Lastro dos navios para minimizar a transferência de organismos aquáticos nocivos e agentes patogênicos (RESOLUÇÃO A.868(20)-IMO).
A Resolução A.868(20)-IMO (1997) define os procedimentos para navios e Estados do Porto; cabendo às embarcações possuírem um plano específico de gerenciamento da sua Água de Lastro e aos portos, dispor de instalações para o recebimento e tratamento da água utilizada como lastro.
A mesma Resolução orienta a realização periódica de limpeza nos tanque de lastro, com o intuito de retirar sedimentos, sendo que tal operação deverá ser executada em mar aberto ou em um porto de maneira controlada, como disposto em seu plano de gestão.
Por fim, como opção para o manuseio da Água de Lastro, sugere-se que a troca seja realizada em águas profundas, em mar aberto, o mais longe possível da costa, à no mínimo, 200 milhas de distância. Tal procedimento se fundamenta no fato de que as espécies oceânicas não sobrevivem em ambientes de regiões costeiras e vice-versa (SERAFIN e HENKES, 2013; RESOLUÇÃO A.868(20)-IMO).
Outras medidas para tratamento de Água de Lastro estão sendo testadas como, por exemplo, a filtração, aplicação de biocidas, ultravioleta, desoxigenação e tratamento térmico, elétrico ou biológico (SANTOS e LAMONICA, 2008).
No Brasil, a Diretoria de Portos e Costas (DPC), adotou medidas de prevenção da poluição por parte das embarcações de acordo com a NORMAN nº20, onde se determina que todos os navios que atraquem em portos brasileiros, comprovem a troca de Água de Lastro.
No que tange a gestão e controle da Água de Lastro, o Brasil é considerado um Estado protagonista, tanto no âmbito nacional como internacional, na proposição de medidas para atenuar e prevenir bioinvasões, e na condução de pesquisas acadêmicas (ZANELLA, 2015).
O Brasil faz parte do Programa Global de Gerenciamento de Água de Lastro (GloBallast), o qual através do convênio com várias instituições e pesquisadores, realizam análise e levantamento do histórico da introdução de diversas espécies, além de desenvolver métodos que mais se ajustem às normas ambientais (SANTOS e LAMONICA, 2008).
Não obstante todo esse empenho, de acordo com o estudo já citado da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2002), verificou-se que 62% das embarcações avaliadas, cujos comandantes declararam ter efetuado a substituição da Água de Lastro em áreas oceânicas, conforme orientação da IMO, provavelmente não o fizeram ou fizeram de foram parcial.
A Água de Lastro é um dos maiores vetores de propagação de espécies exóticas no mundo, podendo gerar diversos problemas, sejam eles de ordem econômica, social ou ambiental. Muito se tem avançado no controle dessa fonte de poluição, mas torna-se necessário o estabelecimento de barreiras cada vez mais eficientes de controle para a troca da Água de Lastro por parte das embarcações, e um maior controle e fiscalização por parte das autoridades.
Prof. Dr. Fábio Campos
Curso de Gestão Ambiental
EACH – UPS/LESTE
Referências bibliográficas:
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA), Brasil, Água de Lastro. Ministério da Saúde, Projetos GCPAF, 2002.
CARMO, M.C., Plano de Gestão de Água de Lastro de Embarcações. Dissertação apresentada ao Instituto Militar de Engenharia, Departamento de Engenharia em Transportes, 2008.
CARVALHO, A.R., OLIVEIRA, M.V., Princípios Básicos do Saneamento do Meio. Editora SENAC, São Paulo, 2002.
MARINHA DO BRASIL, Resolução A.868(20) – IMO, Diretrizes para o Controle e Gerenciamento da Água de Lastro dos Navios, para Minimizar a Transferência de Organismos Aquáticos Nocivos e Agentes Patogênicos. Marinha do Brasil, Diretoria de Portos, 1997.
PEREIRA, N.N., Alternativas de Tratamento da Água de Lastro em Portos Exportadores de Minério de Ferro. Tese apresentada à Escola Politécnica da USP, Departamento de Engenharia Naval e Oceânica. 2012.
PEREIRA, N.N.; VALOIS, N.A.L., COLABORADORES, A Água de Lastro e os Seus Riscos Ambientais. ONG Água de Lastro Brasil, 2009.
SANTOS, J.G.A.; LAMONICA, M.N., Água de Lastro e Bioinvasão: Introdução de Espécies Exóticas Associadas ao Processo de Mundialização. Revista Vértice, v.10, n.01, 2008.
SERAFIN, I.T.; HENKES, J.A., Água de Lastro: Um Problema Ambiental. Revista Gest. Sust. Amient., Florianópolis, v.02, n.01, pp 92-112, 2013.
VON SPERLING, M., Introdução à Qualidade das Águas e ao Tratamento de Esgoto. Depto. de Eng. Sanitária e Ambiental – DESA/UFMG, Belo Horizonte, v.01, 1995.
ZANELLA, T.V., Água de Lastro e Bioinvasão no Brasil: Uma Análise do Posicionamento do Brasil Frente ao Risco de Bioinvasão de Espécies Exóticas Via Água de Lastro dos Navios. Revista Jurídica Luso Brasileira, ano 01, n.6, 2015.