Resíduos De Fármacos Em Águas

As vias hídricas são um grande receptor de resíduos provindos de esgotos industriais, domésticos e agropecuários, sendo extremamente ativos na dispersão de poluentes químicos no ambiente, contendo uma problemática que abrange níveis nacionais e globais


As vias hídricas são um grande receptor de resíduos provindos de esgotos industriais, domésticos e agropecuários, sendo extremamente ativos na dispersão de poluentes químicos no ambiente, contendo uma problemática que abrange níveis nacionais e globais.
Com o avanço dos meios tecnológicos para qualificação e quantificação de compostos que podem ser considerados contaminantes em vias hídricas, têm-se conseguido captar dados de resíduos químicos em concentrações cada vez menores, porém com efeitos biológicos que foram capazes de chamar a atenção da comunidade científica. Estes resíduos são considerados Contaminantes Emergentes.
Contaminantes emergentes são poluentes não regulamentados que, dependendo dos resultados dos estudos sobre a sua toxicidade e/ou efeito nefasto sobre a saúde humana e animal, o meio ambiente e de dados de monitoramento relativos à sua ocorrência no mesmo, podem se tornar candidatos a futuras regulamentações. Estes compostos são, em sua maioria, constituídos por substâncias utilizadas no dia-a-dia, porém, não sem dados ecotoxicológicos suficientes, que permitam ver seus efeitos na saúde humana.
Estes contaminantes são constituídos por substências como cianotoxinas, micotoxinas, aditivos de gasolina ou industrial, retardantes de chama bromados, hormônios esteróides, surfactantes, produtos farmacêuticos e de cuidado pessoal, compostos poli fluoretados, nanomateriais e subprodutos de desinfecção, entre outros. Dentre esses compostos, tem-se dada especial atenção ao grupo dos fármacos, os quais são permanentemente liberados no meio ambiente, estimulando vários estudos a respeito do seu impacto ambiental em nível global.
Os estudos realizados até os dias atuais têm identificado, em diferentes ambientes, tais como águas residuais, águas superficiais e subterrâneas destinadas à produção de água para consumo humano, sedimentos e biota, residuais de vários fármacos de diferentes classes terapêuticas, incluindo analgésicos, antiinflamatórios, antibióticos, antidepressivos, antiepilépticos, bloqueadores beta, reguladores lipídicos, meios de contraste radiológico, contraceptivos orais, broncodilatadores, citotóxicos além de medicamentos para uso veterinário.
A presença de resíduos de fármacos no meio ambiente pode apresentar efeitos adversos em organismos terrestres e aquáticos, podendo reagir em qualquer nível da hierarquia biológica e pode ser observado em concentrações na ordem de ng/L, para certos tipos de compostos, além de sua presença no mesmo representar um risco para os ecossistemas e direta ou indiretamente para o ser humano, porque, contrariamente à maioria dos poluentes, eles foram concebidos para terem uma ação específica no organismo humano e atuarem em concentrações muito baixas, já que apenas parte dos fármacos é absorvida, sendo a outra parte excretada e enviada diretamente aos meios hídricos.
O presente trabalho buscou avaliar o tema, bem como suas possíveis implicações ambientais e de saúde pública.

A indústria farmacêutica no Brasil e a venda de analgésicos
Nos últimos anos, o mercado brasileiro de medicamentos tem apresentado expressivo crescimento na esteira da melhoria da renda da população, da expansão dos usuários de planos e seguros privados de saúde, do maior acesso a tratamentos médicos e do crescimento vegetativo da população. Com isso, o Brasil se posicionou entre os seis maiores mercados farmacêuticos mundiais, com a movimentação de R$ 125,1 bilhões em 2014, e deve galgar mais uma ou duas posições até 2018, segundo dados de um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), que passará a acompanhar a evolução trimestral do setor.
Não somente o IBPT, como também o IMS Institute for Healthcare Informatics apresenta dados que se relacionam muito bem com os apresentados acima e fazem uma especulação bem parecida. A Tabela 1 apresenta o ranking mundial do mercado farmacêutico.

 

Resíduos De Fármacos Em Águas


Um panorama geral da Indústria Farmacêutica feito pela CNQ (Confederação Nacional do Ramo Químico), em 2015, diz que o Brasil, juntamente com a Rússia, Índia e China são os que mais crescem, ampliando sua participação de 23% entre 2008 e 2012 para 33% entre 2013 e 2017 e, utilizando a tabela acima, podemos notar que suas projeções são semelhantes às do IBPT. Segundo eles, este crescimento está relacionado diretamente com o avanço do mercado de genéricos, que vem ampliando sua participação no mercado mundial. De acordo com informações deste ano, provindas da Progenéricos (Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos) existem hoje, no país, 110 fabricantes de genéricos, responsáveis por mais de 3,6 mil registros de medicamentos que derivam mais de 21,7 mil apresentações comerciais. O faturamento do setor que se aproximou dos 5,7 bilhões de reais em 2015, deve avançar acima dos 10% neste ano.
Como exemplo da representatividade dos analgésicos nessa gama de vendas crescentes de genéricos, pode-se citar o medicamento Cymbalta (Duloxetina), do laboratório Eli Lilly, registrando um acúmulo de vendas no valor de R$167,9 milhões, entre setembro de 2012 e agosto de 2013, vale ressaltar que este medicamento já teve sua patente expirada.
Um levantamento feito pela consultoria IMS Health, mostra que a venda de analgésicos puros (para dor e combate à febre, exceto os relaxantes musculares) movimenta cerca de R$ 2,6 bilhões por ano, além de afirmar que esse segmento é o mais importante entre os medicamentos isentos de prescrição, ou OTC (Over-the-counter, na sigla em inglês). (Estadão, 2013). Com relação aos dias atuais, só neste semestre a venda de medicamentos cresceu 12% no geral, com exceção do grupo FarmaBrasil, formado por nove farmacêuticas, que atingiu a linha de 14,3% no mesmo período, sendo superior ao mercado. (ALANAC, 2016). A Tabela 2 ilustra esse fato.

 

Resíduos De Fármacos Em Águas


Analisando o ranking dos remédios mais vendidos no ano de 2015 feito pelo IMS Health e disponibilizado no ambiente virtual do Conselho Regional de Farmácia da Paraíba (CRF-PB), pode-se perceber que 40% dos mesmos, agrupados por unidade, são representados por analgésicos, o que indica boa representatividade desse medicamento no setor. Este número cai para 30% quando os dados são agrupados em razão do faturamento.
Os analgésicos são medicamentos que tem como função de aliviar a dor, ao ingeri-lo, este passa por quatro processos no corpo para que possa ter efeito, que são: absorção, distribuição, metabolização e excreção.
Todo medicamento ingerido começa a ser absorvido no estômago, tendo seu processo concluído, geralmente, no intestino delgado. Ao chegar ao intestino delgado, o princípio ativo alcança os capilares sanguíneos, onde é levado até a veia porta, responsável por drenar o sangue no intestino, conduzindo-o até o fígado. É justamente neste órgão que a distribuição ocorre, onde os capilares vão condicionar a medicação para atuar na célula alvo de interesse.
Quando o medicamento alcança a célula alvo, parte dele é metabolizado, atuando sobre a fisiologia da célula de acordo com sua farmacologia, e o excesso poderá ser eliminado pelo organismo, sendo papel principal dos rins realizar essa tarefa na medida em que filtra o sangue, produzindo a urina – porta de saída do medicamento excedente. Em alguns casos, o medicamento poderá ser eliminado pelas fezes.

Presença de resíduos fármacos na água bruta e prováveis impactos ambientais
Segundo estudos da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),  realizados por especialistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou que anualmente milhões de medicamentos são descartados de forma irregular e conforme a pesquisa, realizada em 2013, o montante de resíduos gerado pela população brasileira é de 10,3 mil toneladas por ano outro estudo, publicado na revista Ciências do Ambiente em 2009, quase 89% das pessoas descartam seus resíduos farmacológicos no lixo doméstico. Tal prática agrava o potencial poluidor, já que o resíduo alcançará ou um lençol freático ou um corpo d’água.
Através de pesquisas em noticiários e publicações de laudos, entre outros títulos científicos, foram encontradas afirmações de que os resíduos de medicamentos afetam a fauna e a flora de rios ou lagos em que são descartados. Um exemplo a ser citado ocorreu no Encontro Anual da Divisão Estadunidense da Sociedade de Toxicologia Ambiental e Química da Califórnia, a partir de estudos de pesquisadores da Universidade de Wisconsin Milwaukee, os quais demonstraram haver uma relação direta entre a presença de resíduos fármacos e a alteração do comportamento natural dos peixes e a fauna dos rios.
Tais consequências ocorrem devido ao fato dos tratamentos atualmente realizados nas estações e tratamento de esgoto (ETE) serem ineficientes na contenção ou eliminação dos contaminantes emergentes, visto tratar-se de um novo grupo de compostos encontrados no meio hídrico em função de atividades antrópicas modernas, além das informações a respeito dos mesmos ainda serem escassas.
De acordo com Richardson et al (1985) apud Bila e Dezotti (2003), há três destinos possíveis para os resíduos fármacos numa ETE: serem completamente biodegradados pelo processo biológico em curso no tratamento; serem parcialmente biodegradados ou serem persistentes, e passarem ilesos pelo processo.
Há um consenso entre os pesquisadores do assunto que estudos envolvendo o comportamento de resíduos fármacos na água bruta devam ser realizados periodicamente ao redor do mundo, para melhor compreender as possíveis consequências tanto para os seres humanos quanto para o meio ambiente; além da necessidade em se investir em novas técnicas de tratamento de esgoto eficazes na remoção de qualquer contaminante emergente.
A Tabela 3 ilustra alguns fármacos e suas concentrações residuais no meio ambiente, em alguns pontos do mundo.

 

Resíduos De Fármacos Em Águas


Destino de remédios não consumidos - Pesquisa de campo
Com a finalidade de se ter uma noção de qual o comportamento da população com a eminente necessidade de descartar um remédio, no caso os analgésicos, foi aplicado um questionário a 120 pessoas de diferentes faixas etárias, com a seguinte pergunta: "No caso de você encontrar em sua casa analgésicos vencidos ou em estado de uso duvidoso, como você faria esse descarte?" Buscou-se obter a resposta mais espontânea e direta dos entrevistados. Estas respostas foram transcritas e os dados obtidos podem ser observados na Figura 1.
Percebeu-se no levantamento dos dados, a exemplo do estudo supracitado realizado pela UNICAMP, que a grande maioria dos entrevistados descartam de forma incorreta os medicamentos, sendo que poucos questionaram se haveria uma forma correta de fazer o descarte e como poderiam proceder nos eventuais casos de descartes posteriores. É interessante ressaltar que alguns entrevistados pontuaram jogar de forma incorreta o fármaco, mas reciclar a embalagem.

Tratamento das águas contaminadas por resíduos fármacos
Em um projeto desenvolvido pela Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi realizada a análise de desempenho de 166 estações de tratamento de esgotos urbanos em operação nos estados de Minas Gerais e de São Paulo, onde foram investigadas seis modalidades de tratamento diferentes, compreendendo os processos: (a) fossa séptica seguida de filtro anaeróbio, (b) lagoas facultativas, (c) lagoas anaeróbias seguidas por lagoas facultativas, (d) lodos ativados, (e) reatores UASB operando isoladamente e (f) reatores UASB seguidos por pós-tratamento.
Tal estudo evidenciou a ineficiência dos processos de tratamentos em remover os princípios ativos dos fármacos de uma forma geral. Um adendo interessante é que de acordo com um estudo desenvolvido em Portugal pode analisar que de fato a quantidade de fármacos na água é expressiva (GAFFNEY, 2014). Isso mostra que este problema não ocorre apenas no Brasil, mas pode fazer parte de uma problemática global.

 

Resíduos De Fármacos Em Águas

 

Legislação
Sobre as leis que regularizam o tráfego e venda de fármacos e as leis de descarte de resíduos nos recursos, pode se afirmar que a Lei 5.991 de 1973 a qual regulariza diversos segmentos do processo de distribuição, armazenamento e comércio de fármacos, não contempla a questão da importância de um descarte seguro dos produtos farmacêuticos, da mesma forma que a Resolução CONAMA n° 20 de 1986 e n° 357 de 2005 que visam classificar os níveis de poluição permitida em águas doces, salinas e salobras, acabam focando somente em resíduos sólidos e substâncias químicas e não traçando qualquer nível de tolerância para produtos de origem farmacêutica. O mesmo ocorre com o decreto 8468 de 1976 do Estado de São Paulo, que tem como propósito prevenir e controlar a poluição do meio ambiente, não havendo preocupação com o descarte correto, tampouco com as consequências do mal descarte de fármacos.

Conclusão
A partir da análise das informações obtidas no decorrer deste projeto, conclui-se que a ausência de legislações vigentes e efetivas no país, atrelado a ineficácia técnica das estações de tratamento de esgoto na eficiente remoção de resíduos fármacos, além da falta de informação para a população no que tange o correto descarte de seus medicamentos, o cenário em questão ainda carece de muito estudo e investimento para a devida adequação.
No que tange a presença de resíduos fármacos nos meios hídricos, pode-se observar que de fato há expressivas concentrações desses resíduos, porém, ainda não se pode afirmar com certeza como isso impactaria na saúde humana ou mesmo na biota aquática, evidenciando a necessidade de se investir em mais pesquisas na área.

 

 

Prof. Dr. Fábio Campos
Prof. Dr. do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes e Ciências Humanas (EACH) da USP

Alan Bernardes, Carlos Alberto da Silva Filho, Micaela A. S. H. da Silva, Gabriel A. de Oliveira, Patrícia V. Xavier e Robson Xisto
Alunos do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes e Ciências Humanas (EACH) da USP

 


Referências bibliográficas:

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GAFFNEY, V. J. et al . Análise de fármacos em águas por SPE-UPLC-ESI-MS/MS. Quím. Nova,  São Paulo ,  v. 37, n. 1, p. 138-149,    2014 .

OLIVEIRA, S. M. A. C.; VON SPERLING, M. Avaliação de 166 ETEs em operação no país, compreendendo diversas tecnologias. Parte 1: análise de desempenho. Eng. Sanit. Ambient., Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 347-357, dez.  2005.

QUEIROZ, A. R. Estudo sobre automedicação no uso de analgésicos na cidade de Taboado,. Disponivel em: pt.slideshare.net Acesso em 28/10/2016.

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