O Sentido Da Educação: Transitando “Per Via Di Porre” E “Per Via Di Levare”
Por Tárcia Rita Davoglio
Edição Nº 3 - outubro/novembro de 2011 - Ano 1
Água, a temática desta revista, é um elemento indissociável da vida. Portanto, qualquer tentativa de construir caminhos e pontes que nos levem a sua preservação passa, inevitavelmente, pela reflexão sobre tudo o que é subjacente à natureza humana.
Água, a temática desta revista, é um elemento indissociável da vida. Portanto, qualquer tentativa de construir caminhos e pontes que nos levem a sua preservação passa, inevitavelmente, pela reflexão sobre tudo o que é subjacente à natureza humana. Não há, assim, como falar nem de água nem de vida sem mergulhar em situações corriqueiras que contam quem somos e para onde estamos indo, nas quais atuamos, ao mesmo tempo, como atores e expectadores. E há mesmo muitos cenários cotidianos bem inspiradores!
Porto alegre é uma das capitais mais arborizadas do País, cuja população apresenta índices de escolaridade bem acima da média nacional. Tem gente bonita e questionadora, mate amargo e tradições aos montes. Por outro lado, é uma cidade que tem taxas de urbanização altíssimas, trânsito grotesco e qualidade de vida menos saudável que o desejável, com todos os já bem conhecidos problemas de saneamento e violência. Recentemente, o município empreendeu duas mudanças, a exemplo de outras cidades, visando gerar impacto em alguns desses itens, as quais merecem (independente de seus méritos ou críticas) uma reflexão por trazerem à tona questões que vão além dos limites geográficos.
Uma das mudanças diz respeito à coleta do lixo orgânico para a qual vem sendo testado um modelo de recolhimento por conteiners. É um sistema moderno que envolve engenharia e logística inteligentes, porém, exige coparticipação da população. Os conteiners são depositados nas calçadas ou próximos a elas, em distâncias padronizadas, demandando que os usuários depositem os lixos acondicionados no seu interior. Periodicamente a prefeitura se encarrega de esvaziá-los por meio de caminhões especialmente preparados para este fim, em um processo rápido, seguro e higiênico, evitando que as embalagens de lixo, antes deixadas no chão, se rompam e espalhem dejetos por ruas e calçadas, indo escoar nos já entupidos bueiros. O programa piloto implantado há apenas algumas semanas já contabiliza depredações através de incêndios provocados em diversos conteiners, provavelmente, em uma dessas sessões de vandalismo gratuito que é uma forma de diversão para muitos jovens.
A outra mudança implantada em alguns parques e áreas públicas da cidade são espécies de academias ao ar livre, equipadas com aparelhos de ginástica funcionais e ergométricos, especialmente voltados para a população idosa. O parque Farroupilha, conhecido como a tradicional Redenção, é um dos locais da cidade onde esses aparelhos estão disponíveis, ao lado de uma área de recreação infantil que possui brinquedos típicos dos playgrounds tradicionais. A idéia é ótima, visa combater o sedentarismo, estimulando a socialização e a convivência. Porém, apenas alguns dias de despretenciosa observação dessa estrutura oportuniza a constatação de uma situação bizarra: as crianças não estão mais regularmente brincando na área infantil, mas sim nos equipamentos de ginástica destinados aos adultos e idosos. Na verdade, são sumariamente autorizadas pelos pais a ocupar um espaço que não se destina a elas, inclusive com o risco de terem lesões físicas ao se exercitaram em aparelhos impróprios para a sua faixa etária. Os pais não só validam, assistem e estimulam o triste espetáculo dos filhos ultrapassando todos os limites da boa educação e do respeito aos mais velhos, gerando um clima de desconforto que obriga aqueles que de fato pretendiam se exercitar a aguardarem até que os "brinquedos" (os equipamentos) sejam desocupados pela gurizada, mas o fazem sem o menor constrangimento. Uma observação mais atenta nos dias de semana permite constatar que os pais trazem os filhos, de todas as idades, para brincarem nos equipamentos antes de irem para as aulas nas escolas que se situam nas redondezas. Algumas mães inclusive aproveitam os equipamentos para depositarem sobre eles as pesadas mochilas e lancheiras dos filhos enquanto aguardam as gracinhas de seus pimpolhos acabarem, piorando ainda mais a vida de quem pretendia se exercitar. Contribuindo para polemizar o cenário, praticamente em frente a esta "academia" da Redenção, está uma das mais tradicionais e disputadas escolas de Porto Alegre, o Colégio Militar, levando-nos a inevitável inferência de que os anos de escolaridade/ensino formal e a educação não necessariamente andam de mãos dadas em nossa cultura.
Essas duas situações observadas, o vandalismo dos conteiners e a deturpação da função das academias públicas, não são de modo algum restritas à capital gaúcha. Aparentemente desconexos, esses dois fatos guardam entre si uma mesma raiz: o sentido da educação. A educação é a grande responsável pela transmissão de valores, de modos de ser, de conviver, de respeitar estabelecidos entre as gerações e o ecossistema, determinando o ajustamento ou não à convivência harmoniosa, pacífica e saudável. Ela pode se processar por meio do ensino formal, do "ir à escola" como parece que muitos pais esperam, mas a educação, como processo socializador e civilizatório vai além, é de fato um fenômeno inerente ao dia-a-dia, à informalidade exercida nos inúmeros espaços de convívio interpessoal e social. Nesse sentido há uma imensa diferença entre a educação que se atinge pela "via di porre", a qual pressupõe o ingresso de um grande número de informações do mundo exterior à mente do indivíduo, inflando-o, ou seja, surgindo de fora para dentro; e a educação que se atinge pela "via di levare", esta, fruto das conclusões extraídas pelo próprio indivíduo a partir dos recursos internos e das experiências que mantém, em um processo de apropriação que se operacionaliza de dentro para fora, desenvolvendo e produzindo conhecimento.
As crianças estão apenas descobrindo um ambiente novo, curiosas e ávidas para usufruir de algo que não é destinado a elas? Sim, pode ser essa situação. Mas há nisso uma farta e rica oportunidade para que aprendam a suportar a frustração, para que percebam, com a ajuda dos pais, a diferença de gerações, os limites, as normas que harmonizam a convivência entre os seres vivos. É a partir dessas vivências que as crianças podem de fato organizar seu mundo interno, seu psiquismo, de modo a socializarem-se, a saírem do egocentrismo em direção ao desenvolvimento emocional, fortalecendo sua identidade, adquirindo noção de interno (o que quero) e externo (o que devo), encontrando ajustamento e proteção. O vandalismo é fato conhecido nos grandes centros, uma espécie de fatalidade da juventude contemporânea que protesta e reivindica voz e vez por meio da destruição do patrimônio coletivo? Sim, pode ser isso também, mas não se chega nem à adolescência nem à idade adulta sem antes percorrer a infância. Não são fatos isolados: as crianças que educamos se tornam adolescentes com os quais teremos que conviver; adultos que teremos que suportar; idosos que teremos que amparar. Se as crianças não sabem seu lugar, quem são os responsáveis? Se os jovens estão entediados demais para desejarem romper com o narcisismo que apenas os fazem ver a si mesmos, a quem responsabilizar? Se os adultos não conseguem perceber qual de fato é seu papel diante da existência do outro, não se pode simplesmente aceitar! Aqui começa a única possibilidade de rompimento desse ciclo de desrespeito e falta de educação com os outros e com o planeta.
Os adultos precisam deixar de ser tolerantes com outros adultos que não entendem que o mundo necessita que se portem como gente. É difícil admitir isso, mas por sorte há bons exemplos. Um dia desses ouvi um conceituado jornalista relatando em um telejornal uma experiência sua. Parados no sinal de trânsito, ao ver outro motorista jogar pela janela do carro uma bituca de cigarro (só para lembrar, pontas de cigarro não são biodegradáveis, levam anos e anos para serem decompostas, obstruindo as redes de esgoto ou começando incêndios devastadores em beiras de estradas), este jornalista desceu do seu carro e, batendo no vidro do outro motorista, lhe entregou a bituca que recolheu do chão, dizendo: "Isto é seu, o senhor deixou cair". Que inveja! Quantos de nós teríamos esse trabalho e essa coragem? O jornalista finalizou seu relato com a constatação de que não se pode esperar que alguém que não se importa em poluir seus próprios pulmões vá espontaneamente se preocupar em não sujar o planeta. É preciso que seja ajudado, chacoalhado, confrontado, responsabilizado. Há quem não aprendeu a pensar pela "via di levare", não desenvolveu a capacidade de aprender de outra forma que não seja de fora para dentro, colocando lá, mastigadinho, os valores, os limites. Talvez precise de um "superego externo", através de outras pessoas, que o empurre para que possa ajudar seus filhos a adquirir alguma noção de limite e respeito para que se tornem adultos diferentes dele mesmo.
Certamente que podemos encontrar em cada capital do país situações pitorescas que guardam em sua essência as mesmas questões vistas em Porto Alegre. Salvar o planeta ou salvar a nós mesmos da degradação ecológica e civilizatória, não é tarefa simples que se pode fazer sozinho, aprendida fora da convivência e das relações afetivas. Nesse sentido, esta época do ano, setembro, atrai para si a história vivida, que muito educa aqueles que se dispõe a percorrer a "via di levare". Se para o mundo é tempo de refletir sobre a diversidade e a soberba, para o Brasil, setembro é tempo de comemorar a Independência e para o Rio Grande do Sul, tempo de relembrar a Revolução Farroupilha. Ambas as datas brasileiras, à sua moda, homenageiam a luta pela busca da soberania, o direito ao livre arbítrio, o respeito aos espaços privados e à dignidade. Nesse sentido, o Hino Riograndense, orgulho dos gaúchos, resume em uma de suas estrofes o que muito se ajusta à noção de educação e que talvez não possa ser dito em prosa: "Mas não basta pra ser livre/ Ser forte, aguerrido e bravo/ Povo que não tem virtude/Acaba por ser escravo".
Não posso resistir, porém, a uma pequena observação. Dizem que há outra estrofe do Hino Riograndense, retirada oficialmente durante o Regime Militar, que, embora não cantada, deveria permanecer na memória: "Que entre nós, reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ Sejamos Gregos na glória/ E na virtude, Romanos".
Psicóloga/Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas; Doutoranda em Psicologia/PUCRS; Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS; Especialista em Gestão Empresarial/FGV; Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS; Especialista em Psicopatologia do Bebê/Universidade Paris XIII-França; Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes. Empresa Perfil – Gestão e Avaliações.
Tel.: 51 8188-0733
E-mail: tarciad@gmail.com
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