Sedentos somos melhores para o planeta!
Por Tárcia Rita Davoglio
Edição Nº 6 - abril/maio de 2012 - Ano 1
Certo dia, andando pelo centro da cidade, por acaso, aceitei um desses panfletos entregues aos pedestres no meio da rua. Ao dar-me conta que havia pegado o papel, meu primeiro pensamento voltou-se ao grau de distração que estava no momento para não ter re
Certo dia, andando pelo centro da cidade, por acaso, aceitei um desses panfletos entregues aos pedestres no meio da rua. Ao dar-me conta que havia pegado o papel, meu primeiro pensamento voltou-se ao grau de distração que estava no momento para não ter rejeitado a oferta e minha ideia seguinte voltou-se para como livrar-me dele. Imediatamente corri os olhos em busca de alguma lixeira pública. Primeira constatação: lixeiras em vias públicas estão cada vez mais em desuso, sendo difícil encontrá-las com facilidade.
Cidadã que sou, disposta a não jogar papéis ao chão, resignada, desamassei o panfleto já preparado para ser descartado e deparei-me com um texto pouco usual para uma estratégia de marketing. Premiada em minha atitude de aguardar para colocar o lixo na lixeira, pude ver que o texto impresso fazia uma descrição à sede como o pior anseio de um ser vivo, finalizando com uma questão: "Você tem sede de quê"?
Segundo o dicionário, sede é uma sensação de caráter geral, iniciada por estímulos originados dentro do próprio organismo e não do meio ambiente. Portanto, é intransferível, é pessoal, sem chance de ser ignorada pelo organismo. Fisiologicamente, os estímulos são detectados por receptores através de impulsos inatos que garantem a sobrevivência e geram a motivação que impele o organismo a providenciar o que lhe falta. A satisfação do impulso elimina a origem da sensação. Porém, segundo as descrições gerais, os sintomas da sede podem ser divididos em falsa sede, quando esta é eliminada umedecendo-se a mucosa da boca e verdadeira sede, quando este procedimento alivia, mas não cessa os sintomas.
O tal panfleto finalizava com a constatação óbvia: "Uma pessoa com sede está sedenta." Em segundos essas informações simplórias mobilizaram muitas inquietações que me vieram à mente em forma de questionamentos. Há sim sede pelo mundo afora. Meu estado, Rio Grande do Sul, viu-se neste verão envolto em uma estiagem não existente nos últimos cinquenta anos. Plantações e animais ficaram sedentos, faltou água também para atividades cotidianas das pessoas em alguns municípios, mas ainda havia recursos para obter água potável para o consumo humano. Segunda constatação: embora tenhamos estiagem e racionamento de água em alguns períodos, no Brasil, pelo menos na maior parte dele, ainda não estamos sedentos fisiologicamente. E, talvez, nem emocionalmente!
A definição conceitual aponta que a sede emerge de dentro para fora. Portanto, apenas em um segundo momento associa-se às condições externas. Ou seja: ter ou não ter água potável disponível não é o motivo para sentirmos sede. Este se origina de uma condição metabólica de um sistema orgânico, no caso, sistema fisiológico. Logo, a sensação física de sede depende primariamente do ambiente apenas para a saciação, não para o seu desencadeamento.
Saindo da esfera fisiológica, aplicando essas informações à esfera mental e cultural, ficam muitas questões: Nossa preocupação com a escassez de água potável só será encarada de fato como uma prioridade, quando estivermos expostos à sede fisiológica? Somente se faltar condições de saciar a sede, vamos reconhecer que a falta de água e tudo o que a ela se associa é uma condição mortífera? Em outras palavras: estamos esperando que o ambiente externo provoque a conscientização que deveria emergir dentro de nós de modo tão natural quanto a sede biológica? Basta abrirmos a torneira e dela escorrer água que toda a nossa "sede" por ecologia e sustentabilidade do planeta escorre pelo ralo? Isso significa que nossos anseios por preservação e cuidado ambiental são equivalentes à noção de "falsa sede", então, assim que obtemos algum alívio, desaparece e é esquecida?
Terceira constatação que o tal panfleto me trouxe: Precisamos estar verdadeiramente sedentos por mudanças e cidadania para podermos não nos aliviar apenas com medidas superficiais de proteção dos mananciais de água do planeta. Se movidos por uma sede verdadeira por cuidado ambiental, vamos sim ficar gratos por termos água potável ainda a nossa disposição, acessível e barata. Mas vamos também continuar sedentos por medidas amplas e eficazes de proteção ambiental e sustentabilidade. Nossa sede por consciência ambiental, se legítima, não é aplacada com algumas gotas de soluções instantâneas que apenas umedecem nossos lábios, sem de fato produzir mudanças permanentes e verdadeiras.
A sede, como uma metáfora para a urgência por algo específico,não é de fato o pior anseio de um ser vivo! Ao contrário, do ponto de vista mental e cultural é o melhor dos anseios. É o que mobiliza a busca por soluções verdadeiras, é o que impulsiona para o enfrentamento dos problemas, é o que não nos deixa sossegar sem antes ter certeza que as coisas estão no seu devido lugar. Eis, assim, uma última constatação, que o inesperado panfleto gerou: É preciso estar sedento cognitiva e afetivamente para não se conformar com apenas um fio d’água que escorra de medidas legais ou indivíduos mais evoluídos e perseverar na educação e desenvolvimento ambiental.
Tárcia Rita Davoglio
Psicóloga; Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas; Docente e Educadora. Doutoranda em Psicologia PUCRS; Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS; Especialista em Gestão Empresarial/FGV; Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS; Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes.
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