Contaminantes Emergentes Desafiam O Saneamento Básico
Por Suzana Sakai
Edição Nº 40 - dezembro de 2017/janeiro de 2018 - Ano 7
Da morte de animais ao surgimento de doenças endócrinas e de bactérias super-resistentes. São inúmeros os impactos que a presença dos chamados contaminantes emergentes no meio aquático trazem para a saúde humana e para o meio ambiente.
Da morte de animais ao surgimento de doenças endócrinas e de bactérias super-resistentes. São inúmeros os impactos que a presença dos chamados contaminantes emergentes no meio aquático trazem para a saúde humana e para o meio ambiente.
Contaminantes Emergentes são substâncias notadamente encontradas em diversos estratos ambientais, podendo ser de origem antrópica ou de ocorrência natural, que podem apresentar algum risco ao ecossistema e que não estão presentes nos programas de monitoramento de rotina, carecendo de inclusão na legislação ambiental que limite ou delimite seu Valor Máximo Permitido (VMP). "É preciso entender esta definição sob a perspectiva de que ainda chamamos de emergentes os mesmos compostos que são investigados há 20 anos e cuja a presença no ambiente é conhecida e os efeitos já foram elucidados, ao menos, parcialmente, como a cafeína, fármacos como diclofenaco, ácido salicílico, ou os hormônios etinilestradiol. O termo emergentes, de fato, remete a algo novo, ou seja, compostos que não eram conhecidos anteriormente ou que apenas recentemente aparecem na literatura e por isso, são pouquíssimos os trabalhos encontrados" - afirma a pós-doutoranda em Química Ambiental no Laboratório de Estudos Marinhos e Ambientais (LabMAM) do Departamento de Química da PUC-Rio e pesquisadora Colaboradora no Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (CESTEH/ENSP/FIOCRUZ), Eline Simões Gonçalves.
Dentre as substâncias consideradas como Poluentes Emergentes, pode-se citar: novos agrotóxicos, drogas ilícitas, fármacos, produtos de higiene pessoal, protetor solar, hormônios, retardantes de chama bromados, dioxinas e nanomateriais. "Há, dentro dessa gama de substâncias, aqueles que ainda são chamados de Interferentes Endócrinos, substâncias com potencial ou capacidade de alterar as funções endócrinas, podendo causar efeitos adversos em um organismo saudável" - explica Fábio Campos, Professor Doutor na Escola de Artes e Ciências Humanas da USP no curso de Gestão Ambiental.
Substâncias químicas
Para dar suporte ao desenvolvimento técnico, científico, econômico e social, continuamente uma gama significativa de compostos químicos é colocada no mercado e fatalmente terá como destino final os recursos hídricos, como mostrado na figura abaixo.
Muitos destes compostos não estão inseridos em nenhuma normativa de controle seja ambiental ou de saúde , o que significa que não possuem nenhuma legislação específica e não são avaliados em monitoramentos de rotina. "De fato, tem sido as universidades e os centros de pesquisa, as instituições pioneiras na investigação desses contaminantes, a fim de caracterizar suas origens e destinos no ambiente, sua toxicologia e efeitos à saúde humana e aos demais organismos vivos" - diz Eline.
O Chemical Abstracts Service (CAS), uma divisão da American Chemical Society, apresenta continuamente o registro de produtos químicos que são colocados no mercado. Para se ter uma ideia da quantidade de substâncias lançadas continuamente, em janeiro de 2012, o registro do CAS indicava que estavam disponíveis no mercado mundial mais de 64 milhões de substâncias orgânicas e inorgânicas. Em consulta realizada no fechamento desta matéria, em novembro de 2017, no site www.cas.org, o número de registro de substâncias orgânicas e inorgânicas no CAS já ultrapassava a marca de 134 milhões.
Recentemente, a Professora Doutora Cassiana Montagner publicou um artigo de revisão na "Revista Química Nova" trazendo um levantamento dos dados publicados sobre a presença de contaminantes emergentes em matrizes aquáticas do Brasil. Foram encontrados 58 artigos que abrangiam diferentes classes de contaminantes emergentes, em matrizes aquáticas distintas. "É um número limitado de dados, e isso mostra como há pouca informação produzida sobre o assunto no Brasil, ou seja, este tema ainda é muito insipiente em nosso país" - comenta Eline.
Impactos
Dentre os diferentes compostos que se enquadram como emergentes estão os fármacos ou compostos farmacêuticos ativos. Considerando que essas substâncias são desenvolvidas para provocarem um efeito à saúde humana ou animal, e de que, em geral, elas não são específicas para a espécie humana, ou seja, é possível que outros animais sofram ou possam sofrer os efeitos positivos e/ou negativos para os quais essas substâncias foram produzidas e utilizadas. "Neste contexto, um exemplo clássico sobre o efeito não esperado do uso de um medicamento é o caso do declínio da população de abutres (Gyps bengalensis) na Índia e no Paquistão na década de 1990. A falência renal que levou à morte mais de 90% da população de abutres foi provocada pela ingestão de diclofenaco presente nas carcaças do gado. Como o abutre está no topo da cadeia alimentar, sua morte provocou uma série de problemas da ordem da saúde pública e ambiental. O acúmulo das carcaças dos rebanhos levou à proliferação da população de ratos e cães selvagens, e com isso, ao aumento da incidência da peste bubônica na população humana. O impacto no equilíbrio ambiental e na saúde da população causado pelo efeito do diclofenaco na população de abutres é apenas um exemplo. Pesquisas relacionam, por exemplo, a presença de antibióticos no ambiente e bactérias super resistentes" - conta Eline.
Já se conhece hoje o potencial como interferente ou desregulador endócrino de compostos como bisfenol-a (plastificante muito utilizado na indústria e na produção de materiais plásticos), hormônios naturais e artificiais (como por exemplo, estrona, etinilestradiol, estriol, etc.) e outros aditivos industriais, como os compostos perfluorados – PFOAs (presentes nas panelas de teflon e também utilizados como impermeabilizante em tapetes, sofás e outros itens domésticos), surfactantes (utilizados na fórmula de detergentes), polibromados – PBDEs (utilizados como anti-chamas em produtos eletrônicos) etc., mesmo em concentrações reduzidas como ng L-1 (ou ppt). "De modo geral esses compostos podem imitar a ação de um hormônio produzido naturalmente; bloquear receptores nas células que recebem o hormônio; bem como afetar a síntese, o transporte, o metabolismo e a excreção de hormônios naturais" - explica Eline.
No capítulo 20 do livro "Engenharia Ambiental – Conceitos, Tecnologia e Gestão" - Ivanildo Hespanhol cita como exemplo de consequência destas substâncias a redução das taxas de reprodutividade, puberdade precoce, alterações de funções neurais, alterações de funções autoimunes e o surgimento de diversos tipos de câncer.
Os Interferentes Endócrinos podem ser de 3 classes: estrogênios naturais, estrogênios sintéticos e os xenostrogênios (substâncias químicas sintéticas que confundem os receptores celulares dos estrogênios no organismo, interferindo nas mensagens bioquímicas). "Em geral, esses contaminantes chegam ao ambiente por meio do lançamento de esgoto bruto em corpos d’água. As estações de tratamento de esgoto e de água (ETE e ETA) não possuem estrutura ou processos para removerem eficientemente esses compostos. Diante desse fato, diversas pesquisas têm sido desenvolvidas na tentativa de propor tratamentos complementares para minimizar a presença dessas substâncias no ambiente aquático" - destaca Fábio.
Tratamento
No contexto brasileiro, o primeiro passo para reduzir o impacto dos contaminantes emergentes consiste em ampliar a coleta e o tratamento do esgoto doméstico, ou seja, investir em saneamento básico. "Enquanto os investimentos nesse setor não forem suficientes para a mudança do cenário brasileiro em que grande parte do esgoto doméstico produzido chega aos corpos hídricos sem qualquer tratamento, não é possível pensar, na prática, em outra estratégia mais importante do que essa. Saneamento básico é investimento em saúde e proteção do meio ambiente" - alerta Eline.
Até pouco tempo, o grande desafio era a determinação destes compostos, mas a atual tecnologia analítica tem permitido a detecção destas substâncias em concentrações cada vez mais reduzidas (abaixo de ng L-1) e em matrizes complexas, como esgoto, sedimento e tecido animal. Com isso, atualmente encontram-se facilmente resultados de pesquisas que investigam as formas de remoção de contaminantes emergentes, envolvendo, principalmente, o uso de tecnologias como filtração por membranas, fotólise por ultra-violeta, ozonação e o uso de catalizadores como as nanopartículas de dióxido de titânio e de prata, dentre outros. "O uso dessas tecnologias é aplicado no tratamento avançado da água ou do esgoto, e de modo geral, possuem um custo elevado, e não atuam eficientemente para todos os tipos de contaminantes emergentes" - explica Eline.
As técnicas de filtração por membrana, como a osmose reversa e a nanofiltração, tem se mostrado promissoras alternativas para a remoção de micropoluentes, como alguns dos contaminantes emergentes. "Estas são comumente aplicadas no tratamento da água para abastecimento e também na água de reúso. Diversos trabalhos tem demonstrado a remoção de pesticidas, ftalatos, fármacos e produtos de uso pessoal, estrogênios, dentre outros" - afirma Eline. Já a técnica de biorreator de membrana integra a degradação da matéria orgânica presente no esgoto com a filtração por membranas, superando assim as limitações do convencional lodo ativado (como por exemplo, limitado tempo de retenção dos sólidos e as características de sedimentação do lodo).
Atualmente, o uso de nanomateriais para o tratamento de rejeitos tem sido explorado tanto no nível laboratorial quanto em pequena escala e tem apresentado excelentes resultados. "Nanoadsorventes, membranas preparadas com nanomateriais e nanofotocatalisadores já se encontram disponíveis, mas ainda necessitam maiores desenvolvimentos para aplicações em larga escala e aos multi-resíduos presentes nos efluentes de ETEs e ETAs" - ressalta Eline.
É importante destacar que a maior parte dos estudos realizados sobre remoção de contaminantes emergentes nas ETEs tem focado principalmente na fase aquosa, sendo que a carga desses contaminantes na fase sólida é frequentemente negligenciada. "Assim, a ocorrência e a distribuição de contaminantes emergentes no lodo do esgoto demanda ainda investigações detalhadas, especialmente porque o esgoto digerido é disposto em aterros ou usados como fertilizantes na agricultura e esta representa outra entrada destes compostos no ambiente" - afirma Eline.
Legislação
No Brasil, não há legislação que inclua os contaminantes emergentes. Na verdade, uma das definições para contaminantes emergentes é, justamente, não estarem incluídos em legislações de saúde e ambiente.
Contudo, na medida em que há avanços nas pesquisas sobre o impacto desses contaminantes, estes vão sendo incluídos em normativas específicas, como por exemplo, os compostos polibromados (octa e penta BDE) e os PFOAs, que durante muito tempo foram considerados como emergentes (e ainda hoje são citados como tal na literatura científica) mas que, em 2009, foram incluídos na Convenção de Estocolmo. "Desde então são tratados como Poluentes Orgânico Persistentes (POPs) e assim, seu uso vem sendo restringido ou banido pelos países signatários desta Convenção, como é o caso do Brasil" - conta Eline.
Contatos:
Eline Simões Gonçalves: (LabMAM) e (CESTEH/ENSP/FIOCRUZ)
Fábio Campos: Universidade de São Paulo - USP