Tratamento descentralizado é saída viável para universalização do saneamento
Por Cristiane Rubim
Edição Nº 60 - Abril/Maio de 2021 - Ano 10
Fazem parte das dimensões do saneamento básico: o abastecimento de água, a coleta e tratamento de esgoto, o manejo de águas pluviais e a drenagem urbana, e o gerenciamento de resíduos sólidos
Fazem parte das dimensões do saneamento básico: o abastecimento de água, a coleta e tratamento de esgoto, o manejo de águas pluviais e a drenagem urbana, e o gerenciamento de resíduos sólidos. “Os sistemas de tratamento descentralizados atendem desde uma única família até uma pequena comunidade isolada e mostram-se como uma saída viável para auxiliar na universalização do saneamento básico no País. Considerando as diferentes características de cada município brasileiro, o tratamento centralizado, convencionalmente difundido no Brasil, parece não ser a melhor solução” – afirma William Pessôa, diretor executivo da LiaMarinha.
De acordo com o Prof. Dr. Pablo Heleno Sezerino, professor associado e chefe do Depto. de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e supervisor do Grupo de Estudos em Saneamento Descentralizado (GESAD/UFSC), os sistemas descentralizados de esgoto são um conjunto de ações técnicas que compõem, no todo ou em parte, as etapas de coleta, transporte, tratamento e disposição final dos esgotos gerados por edificações unifamiliares, multifamiliares, comerciais e de serviços presentes na zona urbana, periurbana, urbana isolada e na zona rural. Na maioria dos casos das edificações da zona rural, inexiste o transporte destes esgotos, sendo eles gerenciados no próprio lote.
Fatores e desafios
O Brasil tem 5.568 municípios, com grandes áreas e baixo número de habitantes, muitos com menos de 2 mil habitantes. “Ao avaliar bairros e zonas rurais, existem fatores pontuais, como a distância do centro urbano, a topografia do local, acesso à coleta de esgoto e áreas com maior complexidade de intervenção” – analisa Pêssoa.
A infraestrutura para o transporte dos efluentes até as estações de tratamento centralizadas inviabiliza muitos projetos. “Muitos municípios ainda não têm acesso à coleta do esgoto sanitário. A topografia de alguns locais requer estações de bombeamento, o que onera os custos com equipamentos e a demanda de energia elétrica, além da maior complexidade para tratar maior volume de efluentes” – adverte.
As diferentes características dos municípios brasileiros impõem diversos desafios para a universalização do saneamento. “Mesmo existindo tecnologias inovadoras, alguns municípios não contam com a infraestrutura básica para implantá-las, tornando-as inviáveis.
É necessário pensar no usuário, compreender as características do local e os interesses da comunidade para que a solução proposta seja aceita e forneça bons resultados – reflete Pessôa. Dentro desta perspectiva, a proposta da LiaMarinha é adotar tecnologias ecológicas e sustentáveis, com simples manutenção e operação para o tratamento descentralizado.
Uma das tecnologias mais usadas no tratamento descentralizado do esgoto sanitário residencial no Brasil ainda é a fossa séptica. Mesmo sendo uma solução simples e eficiente para o tratamento primário dos efluentes, segundo Pessôa, normalmente, são ouvidos relatos de fossas sépticas com baixo desempenho operacional. “Ocorrência quase sempre relacionada à baixa ou inexistente manutenção, não adoção de tratamento complementar ou o sistema subdimensionado, causando a disposição do efluente fora dos limites previstos na legislação” – aponta.
Os sistemas de tratamento descentralizados contam com a parceria de diferentes tecnologias complementares. “O objetivo é para atender às características da área de abrangência, às exigências da legislação e aos interesses da comunidade local” – elenca Pessôa.
Perfil avaliado
O perfil do município é avaliado para definir-se a adoção pelo tratamento centralizado ou descentralizado. “Por meio do planejamento estratégico, pode-se avaliar as características do município e levantar dados que permitam analisar e indicar quando se torna mais viável adotar o tratamento centralizado ou descentralizado” – explica o diretor executivo da LiaMarinha.
Na hora de escolher a tecnologia, é importante pensar na operação e manutenção do sistema de tratamento, o que impacta diretamente nos resultados da qualidade da água. “Alguns municípios encontram dificuldades na retenção e contratação de profissionais com conhecimento técnico, influenciando no controle do processo, como consequência, há baixo desempenho dos sistemas de tratamento” – alerta Pessôa. Por outro lado, devido ao tratamento do efluente ser menos complexo nos sistemas descentralizados, de simples operação e manutenção, pode-se adotar tecnologias com menor demanda de mão de obra com alta qualificação.
Ampliar serviços
O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), principal documento de planejamento sobre saneamento no Brasil, apresenta dois modelos de “atendimento adequado” de esgotamento sanitário aplicáveis aos municípios brasileiros:
(i) coleta de esgotos seguida de tratamento e
(ii) uso de fossa séptica sucedida por pós-tratamento ou unidades de disposição final, adequadamente projetadas e construídas.
O Prof. Dr. Pablo H. Sezerino enfatiza que é importante implementar serviços especializados para o manejo adequado dos subprodutos, popularmente chamados de lodo, oriundos das unidades de tratamento no lote, tais como as fossas sépticas e os filtros anaeróbios. Estes serviços são compostos pela coleta e transporte desse lodo por veículos tipo limpa-fossa até uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE).
Ele cita que, no Estado de Santa Catarina, o órgão ambiental estadual estipulou o mês de julho de 2021 como prazo máximo para que sejam implantados dispositivos de geoposicionamento em todos os veículos que operam o serviço de coleta e transporte rodoviário de efluentes.
“É notória a necessidade de ampliação do serviço de coleta de esgoto sanitário seguido de tratamento para os aglomerados urbanos. Ao se considerar os dois modais de esgotamento sanitário citados como atendimentos adequados, elevam-se os índices de cobertura destes serviços à população brasileira” – diz o Prof. Dr. Pablo H. Sezerino.
Na Figura 1, vemos o exemplo dos índices de atendimento de esgoto para o Estado de Santa Catarina, considerando o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), o Índice de Desenvolvimento Municipal Sustentável (IDMS) da Federação Catarinense de Municípios (Fecam) e os índices do Atlas Esgoto da Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA).
“É preciso fortalecer a Governança Pública Municipal de saneamento básico a fim de se reconhecer e regular as soluções descentralizadas de tratamento de esgoto no lote, conhecidos como sistemas individuais” – reforça o Prof. Dr. Pablo H. Sezerino. Segundo ele, define-se a Governança Municipal dos sistemas descentralizados de esgoto como um conjunto de mecanismos estratégicos de controle e de liderança, que, postos em prática, permitem monitorar, avaliar e direcionar a prestação de serviços e políticas públicas.
Gerenciamento
ONGs, negócios de impacto e startups vêm adotando modelos de construção colaborativos para pequenos sistemas de tratamento descentralizados. “Com essa ação, a sociedade passa a entender sobre a importância da conservação da água e aprender a construir as tecnologias sociais, como bacias de evapotranspiração e fossas sépticas biodigestoras. Além disso, capacitam os aprendizes na operação e na difusão do conhecimento” – enfatiza Pessôa.
Os sistemas de tratamento descentralizado em maior escala vêm sendo aplicados pelas empresas privadas. “Esta é uma forma de atender aos requisitos da legislação e gerar receita com o tratamento dos efluentes de outras empresas” – ressalta.
O tratamento off-site é um bom exemplo de como o tratamento descentralizado pode contribuir para o meio ambiente e produzir benefícios financeiros. “O gerador dos resíduos líquidos terceiriza o serviço para uma empresa especializada e passa a focar apenas em seu negócio, trazendo benefício para as duas partes do negócio” – enfoca o diretor executivo da LiaMarinha.
O gerenciamento dos sistemas descentralizados dependerá do modelo aplicado. “Podendo ser de responsabilidade do setor público, privado ou como tecnologia social, do beneficiário ou da organização proponente” – afirma Pessôa.
Considerando os sistemas de esgotamento no lote, tanto o proprietário da edificação no lote quanto o Poder Público Municipal são responsáveis. De acordo com o Prof. Dr. Pablo H. Sezerino, o proprietário, por intermédio de um profissional habilitado, destacando-se engenheiros(as) sanitaristas e ambientais, apresentará ao município, na maioria dos casos, representado pela Vigilância Sanitária, o projeto de concepção do sistema descentralizado mais adaptado às questões locais. O objetivo é de legitimarem as responsabilidades associadas, recebendo atestados de conformidade por meio de documentos oficiais, tipo Habite-se Sanitário.
Quando implantado o sistema descentralizado de tratamento de esgoto no lote, as ações operacionais periódicas para o bom funcionamento dos equipamentos continuam sob a responsabilidade do proprietário. Segundo o Prof. Dr. Pablo H. Sezerino, o proprietário acionará profissionais habilitados para executar os serviços específicos ao arranjo tecnológico adotado, que precisa de retirada do lodo, seguido do transporte e tratamento adequados. E o município precisa fortalecer os instrumentos de Governança Pública para que se possa monitorar a eficácia desses serviços.
Variação de custos
Dado que existem inúmeros arranjos tecnológicos no contexto do tratamento descentralizado de esgoto, há ampla variação nos custos de implantação (Capex) e operação (Opex).
O Prof. Dr. Pablo H. Sezerino cita um exemplo.
Em estudo recente feito por pesquisadores do Grupo de Estudos em Saneamento Descentralizado (GESAD) e do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental (ENS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apontou-se a seguinte relação:
• Para Filtros Anaeróbios tratando efluente líquido das Fossas Sépticas, os valores de Capex foram de R$ 80 por habitante equivalente;
• O que contrasta com os valores de Capex para Lodos Ativados em Batelada de R$ 336 por habitante equivalente.
Sistemas acessíveis
As tecnologias para o tratamento descentralizado variam conforme a vazão de projeto e a carga do efluente, adotando-se por vezes tecnologias complementares. “Para uso residencial no tratamento de esgoto sanitário, indica-se um sistema que atenda à legislação e forneça simplicidade operacional e de manutenção” – salienta Pessôa. Ele cita os sistemas compactos pré-moldados, fossas sépticas biodigestoras e tanques de evapotranspiração, que são muito utilizados no Brasil com bons resultados, sendo acessíveis e de baixo custo.
Em maior escala, para uso em pequenas comunidades, zonas rurais, bairros afastados e locais de difícil acesso, deve-se avaliar a vazão de projeto, a carga do efluente e a área disponível. Reunir todas essas informações propicia definir a tecnologia que melhor atenda às características da área de abrangência do sistema de tratamento descentralizado. “Tecnologias como os alagados construídos, conhecidos como wetlands, além removerem poluentes com elevado desempenho, podem ser integradas com ambientes paisagísticos e beneficiadas pela técnica de fitorremediação com o uso de plantas, o que proporciona educação e consciência socioambiental” – destaca.
Os sistemas descentralizados diminuem os custos das Estações de Tratamento de Água (ETAs). “Ao fornecer água com menor concentração de poluentes, sólidos e turbidez antes mesmo da captação, reduzindo custos operacionais com o uso de produtos químicos” – aponta Pessôa.
Tratamento natural
Desenvolvida pela LiaMarinha, a Estação de Tratamento Natural (ETN) é uma solução inspirada na natureza para melhorar a qualidade das águas. A tecnologia utiliza ilhas flutuantes vegetadas, que são sistemas modulares onde é aplicada a técnica de fitorremediação in situ de forma segura e controlada, com plantas nativas e naturalizadas em ecossistemas brasileiros. Além das barreiras filtrantes, que funcionam como chicanas removendo contaminantes por refis de fibras orgânicas.
Simples de operar e manter e com baixo custo operacional, a ETN auxilia a reduzir contaminantes orgânicos e inorgânicos da água, sem uso de produtos químicos e energia elétrica. Pode ser replicada para rios, lagoas, reservatórios e Estações de Tratamento de Efluentes (ETEs) que utilizam lagoas de estabilização em seu processo.
Mais modernos
Uma série de alternativas tecnológicas faz parte do tratamento descentralizado de esgoto, tanto em condomínios horizontais e verticais de residências, loteamentos, grandes edificações comerciais e residências unifamiliares. Segundo o Prof. Dr. Pablo H. Sezerino, durante muito tempo, as normas NBR 7229/93 e NBR 13969/97 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT vêm sendo empregadas para escolha do arranjo tecnológico.
Destacando-se a fossa séptica, que age como decanto-digestor do tratamento primário no esgoto afluente; seguida de unidades complementares que atuam no efluente líquido pós-fossa e fazem o tratamento secundário nestes esgotos. O efluente tratado é disposto no solo por infiltração, utilizando-se de valas ou sumidouros. É determinada a capacidade de infiltração do solo local e do nível do lençol freático para que sejam escolhidos como corpo receptor dos esgotos tratados.
As duas normas estão em processo de revisão. “O objetivo é de incorporar sistemas modernos, compactos e automatizados para aprimorar a qualidade dos sistemas descentralizados de tratamento de esgotos e possibilitar, inclusive, agregar valor aos subprodutos gerados e o reciclo das águas nas próprias edificações” – pontua o Prof. Dr. Pablo H. Sezerino.
Vem se implantando mundialmente sistemas baseados na natureza como alternativas sustentáveis de tratamento descentralizado de esgoto. O Prof. Dr. Pablo destaca o uso dos wetlands construídos como tratamento complementar de efluentes líquidos de decanto-digestores tipo fossa séptica ou reatores anaeróbios compartimentados (ver Figura 2).
O GESAD/UFSC é protagonista nacional no estudo e desenvolvimento desta ecotecnologia, compondo um grupo de universidades, empresas e usuários dos sistemas wetlands construídos, intitulado Wetlands Brasil. No site do GESAD www.gesad.ufsc.br, há diversas experiências apresentadas e aplicadas ao saneamento descentralizado.
Novo Marco Legal
O Novo Marco Legal abre as portas para melhores práticas no saneamento e a entrada de novas tecnologias com mais ferramentas para alavancar a universalização. “Mais profissionais serão capacitados, haverá maior conhecimento técnico entre as organizações, com maior adesão às novas soluções de mercado e adoção de novos modelos para o tratamento de efluentes” – diz Pessôa, da LiaMarinha.
Conforme a Lei 14.026, de 15 de julho de 2020, a universalização dos serviços é a ampliação do acesso de todos os domicílios ao saneamento básico, incluídos o tratamento e a disposição final adequada dos esgotos sanitários. “O alcance da totalidade de domicílios brasileiros somente será possível quando do reconhecimento e implementação dos múltiplos modelos de serviços de esgotamento sanitário e do fortalecimento dos instrumentos de Governança Pública em nível municipal” – afirma o supervisor do GESAD/UFSC.
A Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, e a Lei 14.026, que legalizam o saneamento no Brasil, evidenciam a importância dos sistemas de esgoto sanitário para além da proteção ambiental, destacando o potencial do esgoto tratado ser empregado como água de reúso (ver Figura 3). “As leis reforçam a participação comunitária na definição da alternativa tecnológica mais apropriada à realidade local, correlacionando os modais de esgotamento sanitário com a economia circular em nível municipal” – aponta o Prof. Dr. Pablo H. Sezerino.
Contatos
LiaMarinha: www.liamarinha.com.br
Prof. Dr. Pablo Heleno Sezerino: pablo.sezerino@ufsc.br