Reúso de águas cinza para produção de alimentos
Por Carla Legner
Edição Nº 70 - Dezembro de 2022/Janeiro de 2023 - Ano 12
A água é um item fundamental no dia a dia das pessoas, utilizada para cozinhar, lavar, tomar banho, regar as plantas, e diversos outros afazeres. Também é um recurso indispensável para as indústrias, sendo um dos elementos básicos para o funcionamento de
A água é um item fundamental no dia a dia das pessoas, utilizada para cozinhar, lavar, tomar banho, regar as plantas, e diversos outros afazeres. Também é um recurso indispensável para as indústrias, sendo um dos elementos básicos para o funcionamento de diversas atividades e processos.
Após sua utilização, toda essa água, independente da finalidade, é descartada pelo esgoto e classificada conforme uso, teor de contaminação e resíduos. A que foi usada em processos domésticos é denominada água cinza, ou seja, qualquer água não-industrial, gerada por uma residência ou comércio.
Esse tipo corresponde entre 50% e 80% do esgoto residencial, recebendo esse nome pela sua aparência turva. Ela possui resíduos de alimentos e altas concentrações de produtos químicos tóxicos provenientes de materiais de limpeza e outros insumos. Segundo Wilson Tadeu Lopes da Silva, Pesquisador da Embrapa Instrumentação, tecnicamente, as águas cinzas representam o esgoto que não possui excreta humana.
“Os sabões e detergentes conferem um tom acinzentado à água e, por isto, sua denominação. É o esgoto geralmente contaminado por restos de sabões e detergentes, óleos, gorduras, restos de alimentos etc. Por não estar composto por resíduos de vaso sanitário, a contaminação microbiana por coliformes e outros vermes é relativamente baixa” – detalha Silva.
Apesar da abundância desse recurso tão importante ao planeta, nem toda água disponível é apta para consumo ou utilização em atividades diversas. Atualmente, a falta de água potável já é uma questão social e econômica no Brasil, fato que acarreta problemas em diversos níveis da sociedade.
Por esse e outros motivos, o reúso se tornou uma ferramenta importantíssima. As águas cinzas, por exemplo, podem ser reaproveitadas. Trata-se de uma oportunidade valiosa para que a sociedade disponha de maior quantidade e melhor qualidade desse item tão fundamental na rotina de todos.
O processo para seu tratamento é altamente eficiente e pode ser instalado em áreas que seriam inadequadas para o tratamento convencional. Isso por si só, já é uma grande vantagem, mas podemos destacar ainda a diminuição do uso da água tratada, redução do uso de energia e produtos químicos, recuperação do lençol freático, crescimento de plantas e menor poluição em outras águas.
Uma das formas mais econômicas e simples de reúso é coletando a água utilizada em banheiras (recolhendo com baldes), chuveiros (recolhendo enquanto o chuveiro esquenta) e máquinas de lavar (conectando uma mangueira ao reservatório). Ainda sim, existem também tecnologias sustentáveis para seu tratamento e utilização.
Vale destacar que a reutilização destas águas não é própria para consumo humano, ou seja, só deve ser realizado para fins não potáveis, como irrigação de jardins, lavagem de pisos e carros, descarga de bacias sanitárias, lagos e piscinas naturais, e também na agricultura.
Produção de alimentos
Segundo Silva, apesar de possuir baixa contaminação microbiológica, a poluição química por sabões, gorduras e outros impedem que este líquido seja utilizado na agricultura sem tratamento prévio, já que suas características podem levar a alterações nas propriedades físicas e químicas do solo (principalmente entupimento de poros e alterações no pH), com consequente alteração na fertilidade.
Assim, é necessário um tratamento prévio, o qual pode ser uma alternativa interessante para o pequeno agricultor. Desde que tratadas, as águas cinzas podem ser utilizadas em irrigação, como qualquer água.
Para estações de tratamento de esgoto nas cidades existem processos físico-químicos, como a sedimentação (separação de sólidos suspensos mais densos que a água por decantação) e a flotação (separação de sólidos suspensos menos densos que a água, na superfície do líquido, com a ajuda de microbolhas de ar).
Já nas residências rurais, deve-se adotar tecnologias mais simplificadas. Neste caso, é recomendado o uso, por exemplo, de áreas alagadas construídas. Neste sistema, além do meio filtrante, plantas e microrganismos “do bem” agem juntos para degradar a matéria orgânica presente no líquido, com grande eficiência e de maneira natural.
A Embrapa desenvolveu um projeto de Jardins Filtrantes com tecnologia que simula exatamente essa ideia de brejo. As plantas que se desenvolvem nestes ambientes, conhecidas como macrófitas aquáticas, atuam em simbiose com os microrganismos, fornecendo oxigênio e fixação para estes, que liberam nutrientes para as plantas, resultando naturalmente na descontaminação da água.
Trata-se de um pequeno lago (para cinco habitantes, 10 m2 de área superficial e 30 cm de profundidade) impermeabilizado por baixo com o uso de uma geomembrana (um tipo de lona de borracha), preenchido com brita e areia, e saturado com água. Na areia são inseridas plantadas macrófitas aquáticas com potencial paisagístico como lírio do brejo, papiro, copo de leite etc.
“Assim, temos um sistema de tratamento bonito, sem odores desagradáveis e sem vetores (ratos, baratas etc.). O líquido tratado é analisado várias vezes e possui características para reúso agrícola como água de irrigação” – enfatiza Silva.
Paralelo a esse sistema, outra alternativa vem sendo testada e utilizada pela Embrapa no Semiárido brasileiro. O sistema Bioágua Familiar Integrado reaproveita a água doméstica para produzir alimentos e forragens.
Tal sistema já vem mostrando bons resultados, segundo estudo realizado com plantio de palma forrageira pela Embrapa, as plantas irrigadas com essa água alcançaram quase o dobro de produção, em comparação com o uso da água da companhia de abastecimento local. Isso porque, além de ser mais uma fonte hídrica, após passar pelo tratamento no biofiltro também apresenta maior concentração de nutrientes, essenciais para o desenvolvimento das plantas.
O processo é simples. Antes de chegar às plantações, a água das pias, chuveiros, lavanderias e máquinas de lavar roupas passa por um sistema de tratamento. Primeiro ela atravessa uma caixa de gordura, depois segue para o filtro e finalmente para o tanque de reúso, é bombeada para uma caixa d’água onde em seguida é direcionado para o sistema de irrigação.
Todas as etapas são essenciais, mas o filtro pode ser considerado a principal parte do sistema, pois é nele que a água será de fato tratada. Ele tem aproximadamente um metro de profundidade e possui cinco camadas de diferentes composições (de baixo para cima): seixo, brita, areia lavada, pó de serragem e, por último, os húmus com minhocas.
Para cada unidade do Bioágua são necessárias, aproximadamente, mil minhocas do tipo californianas, que são adaptadas ao Semiárido. Elas se alimentam das raspas de madeira e do húmus, absorvendo todo segmento desnecessário, como, por exemplo, os produtos de limpeza. Vale ressaltar que o sistema funciona como uma complementação hídrica, já que não é uma irrigação constante e que outras águas também podem ser utilizadas.
Pensando em sustentabilidade
O pesquisador destaca que a raça humana usa mais recursos que o planeta pode oferecer e neste ritmo, mais cedo ou mais tarde, todos esses recursos se esgotarão. Somam-se a isto, os fenômenos advindos das mudanças climáticas globais, onde eventos extremos (como secas e má distribuição das chuvas) têm feito com que a disponibilidade de água, em termos de qua ntidade e qualidade, esteja sendo fortemente influenciada.
Assim, o uso de tecnologias de tratamento de esgoto que permitam o reúso agrícola seguro pode auxiliar na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas globais. “O Jardim Filtrante desenvolvido pela Embrapa, claro, não resolverá o problema sozinho, mas é uma ferramenta a se somar, bem como pode ser utilizado como exemplo de que é possível o reúso agrícola seguro de efluente de esgoto tratado” – ressalta.
É sempre importante frisar que este reúso deve seguir recomendações de boas práticas agrícolas, para respeito ambiental e segurança do alimento. Ademais, é uma forma interessante de promover o saneamento básico rural. Assim, a promoção destas práticas também está alinhada aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) números 6 (principal), 2, 3, 11, e 15; além de que, para ocorrer de maneira perenizada, o saneamento rural também deve olhar e trabalhar também os ODS 16 e 17.
“Na minha visão, a falta de saneamento também está ligada ao ODS 5 (igualdade de gênero) já que, geralmente, é a mulher que mais sofre com a falta de saneamento, seja porque cuida mais de pessoas enfermas na casa, seja porque que muitas vezes recai sobre ela a busca por água para abastecer a casa em momentos de extrema carência” – enfatiza Silva.
Para ele, promover o saneamento básico é promover a saúde da população atendida, e para que isto ocorra, a população deve reconhecer os benefícios da adoção de boas práticas sanitárias. Nesse sentido, o reúso entra como um fator auxiliador no processo, fazendo com que os beneficiários reconheçam e valorizem a manutenção dos sistemas de tratamento instalados e em funcionamento.
“Com isso tudo, temos um bom exemplo de sistema sustentável, com o tripé social (saúde da população), ambiental (tratamento de efluentes e descontaminação dos recursos naturais) e econômico (ganhos agrícolas pelas práticas de irrigação) ” – completa o pesquisador da Embrapa.
Contato
Embrapa: www.www.embrapa.br