Do modismo dos “orgânicos” à educação ecossistêmica
Por Tárcia Rita Davoglio Edição Nº 5 - fevereiro/março de 2012 - Ano 1 -
Em tempo algum pudemos ver tamanha popularidade em torno de uma expressão como a surgida com a ideia de “orgânico”.
Em tempo algum pudemos ver tamanha popularidade em torno de uma expressão como a surgida com a ideia de "orgânico". "Orgânico" virou sinônimo para um estilo de vida "evoluído", um apelo para o comércio e um misto de obsessão e paranoia para as pessoas. Compreendermos a lógica subjacente pressupõe capacidade crítica, pois, não se trata de termos evoluído no sentido de criar algo mais avançado, mas de reposicionar o que se desvirtuou de sua trilha natural.
Afinal, o que é vivo, por definição, não é orgânico? Há algum modo de concebermos a vida senão através da sua própria sobrevivência, que se constrói por meio de mutáveis e complexas redes de interação entre múltiplos elementos, convertendo em patrimônio comum desde o oxigênio que respiramos até a forma como adoecemos?
Hoje pagamos mais caro por qualquer coisa acompanhada pelo rótulo "orgânico", ainda que a certificação para tal possa nunca ser confirmada. Há tanta ostentação e marketing em torno do conceito que por si só revelam, como diria Hamlet, que "há algo de podre no reino da Dinamarca!" De fato, não há nenhuma evolução legítima em termos que calcar, insistir e normatizar a produção de vida saudável, que não desrespeite os limites do que é próprio de cada espécie. Antes há nisto a evidenciação do quanto enveredamos, como humanidade, para um mundo autodestrutivo, individualista e imediatista, que desrespeita princípios básicos de vida.
O segmento relacionado à nutrição humana é, sem dúvida, o que mais tem evidenciado o conceito de "orgânico", especulando e valorizando formas de produção e cultivo de alimentos que priorizem essa ideologia, no caso, apresentada muito mais como uma metodologia. Alimentos orgânicos são assim considerados se utilizam, em todos seus processos de produção, técnicas que respeitem o meio ambiente e visem a qualidade do alimento, reduzindo e limitando o uso de agrotóxicos e manejos químicos da produção. Na agricultura, por exemplo, utilizam-se apenas sistemas naturais para combater pragas e fertilizar o solo. Na pecuária, carnes e ovos originam-se de animais criados sem a aplicação de antibióticos, hormônios e anabolizantes. Mas outros requisitos, menos difundidos por razões óbvias, também devem ser observados: o conforto do animal, a preservação do comportamento natural da espécie no que tange ao movimento em áreas livres da aplicação de agrotóxicos e/ou adubos minerais sintéticos, com abundância de sombreamento e acesso facilitado às fontes de água, além do abate praticado com o mínimo de sofrimento possível.
Uma perspectiva orgânica, por definição, engloba a noção ecológica e sistêmica (eco-sistêmica), focando em nossa atual necessidade de absorvermos a complexidade e as mutações que caracterizam o universo e a nossa vida. O pensamento ecológico-sistêmico é dialógico, aberto, relacional, multifacetado, baseado em mobilidade e complexidade evidenciando que tudo o que existe também coexiste. Um sistema é a organização de uma unidade complexa que articula e organiza distintos elementos e fenômenos que se estabelecem em um mesmo lugar, tempo e espaço. Um sistema pressupõe interdependência entre seus elementos, além da existência de propriedades comuns que os caracterizam. A ecologia por sua vez, consiste na ciência que estuda os seres viventes e seu meio ambiente. Então, o pensamento ecológico-sistêmico ultrapassa a ecologia natural e ambiental (simplificada na expressão "orgânico") para incluir também as culturas, as sociedades, o indivíduo e a mente. O próprio corpo humano é um excelente exemplo da organização ecossistêmica que dá sustentação à vida.
Contudo, não há como fugir ao fato de que é absurda a tentativa de limitar a perspectiva ecossistêmica à simples noção de"orgânico", restringindo-a a segmentos como a alimentação, por exemplo. Pior ainda, se tentarmos ser "meio orgânicos", ou seja, se nossa atitude enquanto espécie ou indivíduo se opõe aos princípios fundantes do conceito, os quais se desvelam em comportamentos e ações que nos desmascaram. Exemplifico com uma situação cotidiana: quem frequenta feiras ecológicas, essas que vendem produtos agropecuários supostamente "orgânicos", distingue à distância os deslumbrados e os convictos, estes estando ali por uma consciência já desenvolvida e cultivada antes de qualquer modismo. Os primeiros, os deslumbrados, costumam transformar a rotina de compras de produtos "orgânicos" em uma espécie de ida ao shopping center, arrastando consigo todos os maus hábitos que caracterizam a urbanização desregrada e em nada evidenciam consciência ecossistêmica: ocupam mais espaço que o necessário nos estreitos corredores entre as barraquinhas, obstruindo a passagem dos demais; arrastam aqueles abomináveis carrinhos de compras cutucando os calcanhares de quem está a sua frente; param em pleno espaço destinado para o fluxo dos frequentadores a fim de confraternizar com conhecidos que ali encontram, gabando-se de sua atuação "orgânica", gerando um sem número de pedidos de "com licença"; iniciam as compras por volta do meio dia, quando sob o calor escaldante não há vegetal que não murche, para em seguida reclamar das condições do produto. Sem falar dos animais de estimação que trazem no colo, do desfile de sacolas recicláveis de grife que para não sujarem são cheias com produtos já envoltos em sacolas plásticas e do despautério dos comentários acerca dos produtos, denunciando o total desconhecimento do ciclo de vida e da diversidade que reina na agropecuária.
Tais fatos apontam a necessidade de reconhecermos que a ordem e a fragmentação, típicas do conhecimento derivado da ciência clássica, que norteiam comportamentos isolados, não se ajustam à perspectiva ecossistêmica. Edgar Morin denomina de ecossistemologia a ciência que estuda as interações entre distintos sistemas da natureza (humano, social, tecnológico, econômico, vegetal, etc), interações estas que possuem regularidades, ciclos, complementariedades, antagonismos e constrangimentos. Falamos, então, de ações ecologizadas, sujeitas à influência de pensamentos, crenças, valores, atitudes e reações dos demais.
Em tempos passados, o estilo de vida mais natural, menos urbano, permitia que as crianças e jovens observassem cotidianamente as interpendências existentes entre tudo o que está posto no mundo. Era-lhes fácil compreender a importância da sustentabilidade, percebendo que qualquer ação destruidora sobre um sistema, impunha não a destruição puramente, mas a emergência de ações reguladoras sobre os mecanismos de interações que afetam o complexo sistema global. Entendiam, portanto, que o avanço imprudente sobre a natureza geraria escassez de água, que a falta de água para a agricultura resultaria em menos alimentos para as espécies animais, exigindo a demanda por um consumo moderado de certos produtos e no maior respeito aos recursos naturais ainda existentes. Entendiam também a importância dos ciclos da natureza, das estações do ano, das fases da lua para a germinação de sementes e reprodução das espécies animais, a partir da observação destes fenômenos em sua realidade, por meio, por exemplo, da presença ou ausência de certos alimentos em alguns períodos, implicando na mudança de seus hábitos. Não era preciso se declarar vegano, ecologista, místico ou lunático para que isso fosse absorvido pelas gerações que iam se sucedendo.
Levando em conta tais paradigmas ecológicos e sistêmicos até então aceitos e respeitados, os quais se modificaram drasticamente na contemporaneidade sob a influência de inúmeros fatores, retomamos um ponto crucial: a educação. Ainda não despertamos para a urgência de um ecossistema educacional, perdendo muito tempo na educação com focos parciais e reducionistas, como o enfatizado na noção de produto "orgânico". Um contexto legítimo de educação e formação é sempre ecologizado, contemplando uma visão ampla, integrada e profunda, pois, visa à transformação através da ampliação do conhecimento.
Hoje, na contramão desse pensamento, vemos muitos adultos querendo engajar-se no mundo dos "orgânicos", sem ter a menor consciência de que a autonomia de qualquer sistema vivo é inseparável de sua dependência de outros sistemas, apontando a necessidade de rompimento dos dogmas que separam o conhecimento racional e acadêmico da realidade e da vivência. Assim, vão à busca de produtos "orgânicos" apenas trocando de prateleiras nos hipermercados, seguindo "tendências", sem a real dimensão do que deveria implicar esta atitude para toda sua estrutura de vida. Nem sei se percebem que tais produtos são mais caros, restringindo-se a uma parcela abastada da população não simplesmente porque são mais saudáveis, mas porque eliminamos os métodos naturais de cultivo e produção e seu resgate é oneroso sob todos os aspectos.
Há, assim, uma constatação necessária: somos dependentes do meio ambiente e não temos controle sobre ele, a menos que tenhamos controle sobre nós mesmos. A própria ciência evidencia que os seres vivos não resolvem seus problemas apenas adaptando-se ao meio. É vital que modifiquem suas relações, modificando a si mesmos, desenvolvendo um processo de autoconsciência, individuação e diferenciação. Essa autoformação, ou seja, a apropriação de cada um de seu próprio poder de formação, construindo ou modificando a si, é o que produz a verdadeira autonomia, base da sustentabilidade ecossistêmica.
Neste cenário, não é difícil concluir que a educação ecossistêmica tem muito a avançar se pretendemos de fato aplicar o conceito de "orgânico". A educação que estamos oferecendo às novas gerações está totalmente na contramão da noção de interdependência e complexidade, porém, é riquíssima em formas de adestramento racional, possibilitando a aquisição de um repertório comportamental adaptativo sem precedentes e, talvez, também de pouca utilidade para a nossa natureza "orgânica".
Morin (1998) foi sábio ao afirmar que "tudo o que isola um objeto, destrói sua realidade". Assim, pouco adianta focarmos toda a prioridade do sistema formal de educação na aprovação do vestibular, nos resultados das provas do ENEM ou do MEC, pois, isto não irá diminuir o abismo que se estabeleceu entre a formação de doutores e a formação de seres humanos. Diante de nossa existência falível e vulnerável como tudo o que é vivo, de que nos serve o desenvolvimento sofisticado da ciência e tecnologia se não pudermos primar pela correspondente evolução psíquica, ética e espiritual? Como chegamos ao absurdo ponto de termos que usar rótulos redundantes, que ultrajam até a gramática, nos quais escrevemos "tomate orgânico", "alface orgânica"...?
Há uma parábola bem conhecida, que alguns atribuem ao povo Sufi, apresentada em diversas versões, que vale a pena relembrar porque ilustra este abismo entre o que buscamos - por meio da educação reducionista-tecnicista tradicional - e o que necessitamos - a educação ecológica e sistêmica - para garantir nossa autonomia e perpetuação como espécie. Encontrar um modo de fazer a travesseia de uma para outra é o nosso maior desafio, mais do que aprendermos a comer alimentos "orgânicos". Conta a história, que certa vez um erudito e doutorado senhor recorreu aos préstimos do barqueiro Nasrudin. Era ofício deste homem simples conduzir a balsa que fazia a travessia de uma margem a outra do rio, único modo de chegar ao outro lado. Quando iniciaram o percurso, o importante senhor indagou ao humilde barqueiro:
" - Você estudou física e matemática?"
" - Não", respondeu Nasrudin.
" - Sinto muito", concluiu o enfático doutor. "Você perdeu metade da sua existência!"
Um pouco depois, a balsa colidiu com uma rocha e começou a naufragar. Então, o barqueiro Nasrudin perguntou ao assustado doutor:
" - O senhor aprendeu a nadar?"
" - Não", respondeu-lhe o doutor.
" - Sinto muito, então: O senhor perdeu toda a sua existência!" sentenciou o Nasrudin.
Resta-nos sempre a esperança que nosso final possa ser distinto do doutor de Nasrudin, ao aprendermos a selecionar o que é realmente sustentável em nossa vida, pautados por critérios não apenas lógicos e tecnocratas. Quiçá, utilizando a aptidão humana para criar uma espiral evolutiva com alta capacidade transformadora do conhecimento, da sociedade e de cada ser humano, conforme sugere Morin, possamossalvar a espécie humana do naufrágio em nossa própria soberba e ignorância.
Tárcia Rita Davoglio
Psicóloga/Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas; Doutoranda em Psicologia/PUCRS; Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS; Especialista em Gestão Empresarial/FGV; Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS; Especialista em Psicopatologia do Bebê/Universidade Paris XIII-França; Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes. Empresa Perfil – Gestão e Avaliações.
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