Contaminação de água por descarte de fármacos
Por Me. Luciano Peske Ceron Edição Nº 1 - maio/junho de 2011 - Ano 1 -
Os medicamentos contêm substâncias químicas que podem contaminar a água e o solo, portanto, não devem ser descartados no lixo comum
Remédios são essenciais para resolver os problemas de saúde, mas, depois que a enfermidade passou, normalmente sobram comprimidos nas caixas, xarope nos vidros e até ampolas de injeção. Tudo isso fica guardado nos armários até perder a validade. E o que fazemos com eles, então? Não há outra alternativa a não ser jogá-los fora, mas resíduos de medicamentos podem contaminar o solo e a água quando descartados no lixo ou na rede de esgoto comum. O problema é que boa parte da população não sabe disso e o pior que não há postos de recolhimento.
Introdução
Recentemente, o monitoramento de medicamentos no meio ambiente – conhecidos na literatura como ‘fármacos’ – vem ganhando grande interesse devido ao fato de muitas dessas substâncias serem freqüentemente encontradas, em concentrações altas, em efluentes de Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) e águas naturais. Estudos demonstram que várias dessas substâncias parecem ser persistentes no meio ambiente e não são completamente removidas nas ETEs. Sendo assim, muitos resíduos resistem a vários processos de tratamento convencional de água.
Os medicamentos são desenvolvidos para ser persistentes, mantendo suas propriedades químicas o bastante para servir a um propósito terapêutico. Porém, 50% a 90% de uma dosagem do fármaco é excretada inalterada e persiste no meio ambiente. O uso em excesso de antibióticos acarreta dois problemas ambientais: um deles é a contaminação dos recursos hídricos, e o outro é que esses produtos acabam com microorganismos menos resistentes, deixando vivos apenas os mais resistentes.
Dessa forma, as bactérias podem fazer mutações no seu material genético, adquirindo resistência aos fármacos e, assim, uma bactéria presente em um rio que contenha traços de antibióticos pode adquirir resistência a essas substâncias. De acordo com pesquisas cientificas nas ETEs, há três destinos possíveis para qualquer medicamento:
1. Pode ser biodegradável, ou seja, mineralizado a gás carbônico e água, como, por exemplo, o ácido acetilsalicílico;
2. Pode passar por algum processo metabólico ou ser degradado parcialmente, como as penicilinas;
3. Pode ser persistente, como o clofibrato.
Este artigo tem como objetivo ilustrar a situação atual e os impactos causados por fármacos no meio ambiente, além do conhecimento da população a respeito destes problemas.
Produtos farmacêuticos no ambiente aquático
Pouco se conhece sobre a rota dos fármacos no meio ambiente, mas a ocorrência desses compostos pode apresentar efeitos adversos em organismos aquáticos e terrestres. Tais efeitos ocorrem em qualquer nível da hierarquia biológica, como célula-órgãos-organismos-população-ecossistema. Segundo Jorgensen1, alguns desses efeitos podem ser observados em concentrações na ordem de ng/L.
A figura 1 mostra esquematicamente a introdução de produtos farmacêuticos no ambiente aquático.
As ETEs, têm papel fundamental na emissão desses compostos para o ambiente aquático. Nas ETEs os fármacos podem ser degradados, adsorvidos ou ainda reativados, como resultado da atividade microbiana. Estudos de degradação em ETEs de compostos como analgésicos, antibióticos, oncolíticos, hormônios, entre outros, variaram na biodegradação2.
Outra fonte importante para o lançamento de fármacos no ambiente são os efluentes hospitalares, em que as concentrações de drogas individuais ocorrem acima de 100 ?g/L no meio aquoso e acima de 100 mg/L em sedimentos3. Diariamente nos hospitais são administrados vários grupos de substâncias, além dos adjuvantes a eles associados como componentes. Também são utilizadas substâncias diagnósticas e desinfetantes. Todos esses compostos produzem uma mistura complexa, tornando-se necessário monitorar as principais fontes emissoras para o ambiente aquático.
As empresas distribuidoras, farmácias, drogarias e hospitais, diferentemente das indústrias, não possuem estrutura organizacional e sequer passam por fiscalização no que se refere aos certificados e licenças para se manterem ativas no mercado. Muitos desses estabelecimentos contam com o apoio da prefeitura de seus respectivos municípios para destinar seus resíduos. Entretanto, é comum esta última também não dispor de recursos especializados para lidar adequadamente com o material.
O descarte efetuado pelo consumidor final é o que apresenta maior lacuna na legislação. Não há especificações muito claras sobre este ponto. Estabelecimentos comerciais como farmácias, drogarias e centros de saúde não são obrigados por lei a recolher esses produtos, mesmo se ainda estiverem dentro do prazo de validade. O Brasil tem baixa infraestrutura, faltam aterros sanitários adequados e incineradores licenciados em vasta região de seu território, o que compromete a aplicabilidade de medidas ágeis que possam, ao menos, amenizar o problema.
Uma das soluções mais efetivas, a incineração também não é totalmente eficiente. Reduz, e muito, a quantidade, mas ainda restam partículas a serem depositadas nos aterros, além de promover a emissão de dioxinas. Há ainda a poluição causada pela queima de correlatos, como embalagens e frascos.
Por fim, cabe ressaltar a falta de informação de grande parte da população quanto aos métodos e conduta adequados para o descarte de tais produtos, e quanto ao impacto que o descarte inapropriado desses pode provocar ao meio ambiente, inclusive ao próprio ser humano. A embalagem dos produtos farmacológicos não fornece instruções de como proceder com os resíduos, ao contrário de muitos produtos industrializados de outros setores.
Métodos analíticos para determinação de fármacos
Para a determinação de fármacos, diferentes métodos analíticos são reportados na literatura, os quais são principalmente válidos para matrizes biológicas como sangue, tecido e urina, sendo que algumas modificações nestes métodos podem ser suficientes para amostras ambientais4. No entanto, a análise de fármacos residuais em efluentes de ETE, em águas de rios, de subsolos e água potável, requer ainda o desenvolvimento de métodos mais sensíveis para a detecção de concentrações na faixa de ?g/L e ng/L.
Nos últimos anos, muitos métodos para a análise de fármacos em amostras de águas foram publicados, tais como para antilipêmicos ?-bloqueadores, antiinflamatórios e alguns na determinação de antibióticos, estrogênios e drogas psiquiátricas. Ternes5, em seu estudo, fez uma revisão de todos os métodos analíticos utilizados na determinação de vários fármacos residuais, a níveis de ng/L, em diferentes matrizes aquosas. Para detecção de fármacos residuais em ambiente aquático na faixa de ?g/L e ng/L, os métodos descritos na literatura são baseados na extração em fase sólida, em alguns casos, derivatização da substância ácida e subseqüente determinação do derivado por cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massas (CG/EM) ou cromatografia líquida de alta eficiência acoplada a espectrometria de massas (CLAE/EM). A detecção por espectrometria de massas é usada para assegurar a identificação das substâncias estudadas.
A Tabela 1 apresenta as diferentes técnicas utilizadas na detecção de fármacos em amostras de ambientes aquáticos.
Estudos dos efeitos de fármacos
Estudos sobre os efeitos causados ao meio ambiente com o uso de antibióticos na aquicultura foram desenvolvidos por vários pesquisadores6,7,8. Um desses efeitos descreve o desenvolvimento de uma população de bactérias resistentes em sedimentos marinhos. O estudo de Wu mostrou que o maior impacto é no sedimento marinho, e em menor extensão na qualidade da água.
Recentemente, alguns pesquisadores investigaram um grupo específico de compostos químicos presentes no meio ambiente que são responsáveis por causar perturbações no sistema endócrino (hormonal) de organismos humanos e animais: são os chamados perturbadores endócrinos. Dentre esse grupo de substâncias estão os estrogênios naturais e contraceptivos9,10. Alguns autores relatam que, dependendo da dose e do tempo de exposição, é possível que essas substâncias estejam relacionadas com doenças como câncer de mama, testicular e de próstata, ovários policísticos e redução da fertilidade masculina.
As evidências mostram que os sistemas reprodutivos de certos organismos terrestres e aquáticos são afetados por estrogênios, resultando no desenvolvimento de anormalidades e deterioração reprodutiva nos organismos expostos11,12. Consequentemente, numerosos testes e biomarcadores têm sido desenvolvidos para detectar a atividade estrogênica dessas substâncias13,14.
Larsson et al.15 analisaram a atividade estrogênica do efluente de uma ETE na Suécia, pela quantificação de VTG no plasma de uma espécie de peixe, Oncorhunchus mykiss, que foi exposta a esse efluente por duas semanas. Além disso, essa exposição a estrogênios pode causar a feminização de peixes se a exposição ocorrer durante o período crítico da diferenciação sexual. Isso foi observado em espécies de peixes, como Cyprinus carpio e Rutilus rutilus.
Em um experimento com tartarugas da espécie Chrysemys picta, Irwin et al.16 mostraram que as tartarugas fêmeas expostas a estrogênios são afetadas com altos níveis de VTG no plasma. Esses altos níveis de VTG podem alterar o sistema reprodutivo desses animais como, por exemplo, por alterações na produção de ovos.
No estudo de Rodgres-Gray et al.17, peixes jovens da espécie Rutilus rutilus foram expostos a concentrações gradativas de efluente de ETE por 150 dias. Os resultados mostraram que a exposição induziu a feminização de peixes machos. Subsequentemente, os peixes foram gradativamente expostos a águas naturais por mais 150 dias, resultando na redução de VTG no plasma, porém, não se observou alteração no sistema sexual feminizado dos peixes, indicando que o desenvolvimento da anomalia no sistema reprodutivo foi permanente.
Pelo número de estudos nesta área, fica evidente que a exposição à substâncias com atividade estrogênica no meio ambiente é um problema de saúde ambiental global. Essas anomalias têm sido atribuídas à presença de substâncias estrogênicas em ambientes aquáticos e são associadas ao descarte de efluentes de ETE em corpos receptores.
Fármacos residuais monitorados no Brasil
Em 1997, antilipêmicos, antiinflamatórios e alguns metabólitos foram detectados em esgoto, em efluente de ETE e em águas de rios no Estado do Rio de Janeiro por Stumpf et al.18. A concentração média, nos efluentes da ETE, da maioria dos fármacos investigados esteve na faixa de 0,1 a 1,0 ?g/L. Nos rios, as concentrações médias situaram-se entre 0,02 e 0,04 ?g/L, como conseqüência da remoção incompleta dos fármacos durante sua passagem pela ETE e pelo descarte de esgoto in natura. A taxa de remoção de fármacos individuais durante a passagem pela ETE variou de 12% a 90%.
Em outro estudo também relacionado ao Brasil em 1997, realizado por Ternes et al.19, foram encontrados estrogênios naturais e contraceptivos sintéticos na ETE da Penha/RJ. Em esgoto bruto, os estrogênios 17 ?-estradiol e estrona foram detectados nas concentrações de 0,021 ?g/L e 0,04 ?g/L, respectivamente. As taxas de remoção de estrona observadas foram de 67% para o efluente tratado em filtro biológico e 83% para o efluente tratado pelo processo de lodos ativados. Para o 17 ?-estradiol, estas taxas foram de 92% e 99,9% para o efluente tratado em filtro biológico e para o efluente tratado pelo processo de lodos ativados, respectivamente. Para o estrogênio contraceptivo 17 ?-etinilestradiol, as taxas de remoção na ETE foram de 64% e 78% para o efluente do filtro biológico e para o efluente do tanque de lodo ativado.
Tratamento convencional de efluentes
A maior parte dos fármacos que chega às ETE é proveniente de excreção metabólica após prescrição na medicina humana ou veterinária. Os resíduos seguem com o esgoto bruto para as ETE, onde são, na maioria dos casos, submetidos a processos convencionais de tratamento. Contudo, os processos convencionais a que são submetidos os esgotos domésticos, baseados na degradação biológica dos contaminantes, não são eficientes para a completa remoção de fármacos residuais por possuírem ação biocida ou estruturas químicas complexas não passíveis de biodegradação, comprovado por diversos estudos que mostram a presença desse tipo de contaminante em efluentes de ETE20-21.
Os processos biológicos são os mais freqüentemente utilizados porque permitem o tratamento de grandes volumes, conseguem alcançar altas taxas de remoção de matéria orgânica e os custos são relativamente baixos. No entanto, alguns compostos são recalcitrantes e podem, inclusive, ser tóxicos aos microrganismos. Em estudos de biodegradação de fármacos, as taxas de remoção foram da ordem de 50% para sistemas convencionais de lodo ativado22,23.
Os processos físicos (decantação, flotação, filtração, adsorção) são caracterizados pela transferência de fase do contaminante, sem que este seja de fato degradado. Por outro lado, costumam ser bastante eficientes, podendo ser úteis como pré ou pós-tratamento do processo final24,25. Em ETEs que operam com sistema de lodos ativados, a adsorção é o principal mecanismo de remoção de fármacos lipofílicos, como os estrógenos26,27. Os processos químicos baseiam-se na oxidação dos contaminantes pela reação com oxidantes fortes, como peróxido de hidrogênio (H2O2), cloro (Cl2), dióxido de cloro (ClO2) e permanganato (MnO4-). Na maioria dos casos, no entanto, a utilização deste tipo de tratamento não promove a mineralização completa dos contaminantes a CO2, havendo a formação de uma grande variedade de sub-produtos de degradação, em geral, ácidos orgânicos (oxálico, tartárico, fórmico, acético). No caso da utilização de Cl2, há a formação de compostos organoclorados, que podem ser mais tóxicos que o contaminante inicial, sendo este o principal inconveniente quanto ao uso deste oxidante28.
A eficiência de remoção dos fármacos em ETE depende das propriedades físico-químicas de cada composto. Vários trabalhos relatam que a eliminação destes compostos é freqüentemente incompleta, pois a taxa de remoção é variável. Por exemplo, para o anticonvulsivante carbamazepina, uma remoção de 7% foi observada, enquanto que para o analgésico ácido acetilsalicílico, 99% de remoção foi obtida em uma ETE na Alemanha29. Esta oscilação na taxa de remoção também foi observada em ETE na Finlândia, onde 26% de remoção foi obtida para diclofenaco e 92% para ibuprofeno30. Compostos polares tendem a permanecer na fase aquosa, o que favorece sua entrada no ambiente aquático. Por outro lado, compostos pouco polares, são removidos por adsorção no lodo, como mencionado anteriormente31.
Conclusões
Atualmente, há uma crescente preocupação com a presença de fármacos em ambientes aquáticos e seus possíveis impactos ambientais. A literatura mostra que vários pesquisadores, em todo o mundo, detectaram muitos desses fármacos residuais em águas naturais e em efluentes de ETEs.
Uma alternativa muito interessante é a venda fracionada da quantidade de remédios. Esta, aliás, passa por tentativas de implementação, porém, sem sucesso considerável. Isso evitaria a posse desnecessária pelos consumidores finais.
É muito restrita a parcela da população que detém conhecimentos sobre o problema aqui tratado. Faz-se também fundamental a implementação de campanhas de esclarecimento e elucidação dos males gerados por esse tipo de poluição. É necessária a conscientização da população e das autoridades pertinentes ao assunto.
É necessária uma avaliação criteriosa dos efeitos desses fármacos no meio aquático. Uma vez conhecido os efeitos, será necessário estabelecer os limites de concentrações para o descarte seguro de efluentes domésticos tratados em corpos receptores. O monitoramento da eficiência de remoção desses fármacos pelos processos convencionais de tratamento de efluentes domésticos das ETEs é de grande importância, pois, no futuro, podem ser necessárias adaptações, ou mesmo implantar outros processos de tratamento que complementem a remoção adequada desses fármacos.
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19. Ternes, T. A.; Stumpf, M.; Mueller, J.; Haberer, K.; Wilken, R.-D.; Servos, M.
20. Castiglioni, S.; Bagnati, R.; Fanelli, R.; Pomati, F.; Calamari, D.; Zuccato, E.
21. Hirsch, R.; Ternes, T.; Haberer, K.; Kratz, K.
22. Clara, M.; Strenn, B.; Guns, O.; Matinez, E.; Kreuzinger, N.; Kroiss, H.
23. Radjenovic, J.; Petrovic, M.; Barceló, D.
24. Freire, R. S.; Pelegrini, R.; Kubota, L. T.; Durán, N.; Peralta-Zamora, P.
25. Kunz, A.; Peralta-Zamora, P.; Moraes, S. G.; Durán, N.
26. Fent, K.; Weston, A. A.; Caminada, D.
27. Radjenovic, J.; Petrovic, M.; Barceló, D.;
28. Vella, P. A.; Munder, J. A.
29. Ternes, T. A.
30. Lindqvist, N.; Tuhkanen, T.; Kronberg, L.
31. Carballa, M.; Omil, F.; Lema, J. M.; Llompart, M.; García-Jares, C.; Rodríguez, I.; Gómez, M.; Ternes, T.
Me. Luciano Peske Ceron Engenheiro Químico (PUCRS), Doutorando Engenharia de Materiais (PUCRS), Mestre Engenharia de Materiais (polímeros/não-tecidos - PUCRS), Especializações em Gestão Ambiental (GAMA FILHO) e Gestão Empresarial (UFRGS). Tem experiência nas áreas: petroquímica (polipropileno, polipropileno aditivado, PET, borracha sintética, etil-benzeno), têxtil (fabricação de não-tecidos, mangas filtrantes, palmilhas, cortinas decorativas), papel e celulose, tratamento de água e efluentes, tecnologia da informação e logística por software. Tel.:51 9972 6534 E-mail: Ceron.Luciano@gmail.com |