O saneamento nosso de cada dia
Por Me. Tárcia Rita Davoglio Edição Nº 1 - maio/junho de 2011 - Ano 1 -
A presença do polegar opositor não basta para nos distinguir das espécies mais primitivas da cadeia evolutiva
Segundo dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da UNICEF, em pleno século XXI 39% da população mundial (ou seja, 2,6 bilhões de pessoas) vivem sem nenhum saneamento básico, situação responsável pelo óbito de cerca de 1,5 milhões/ano de crianças até cinco anos de idade. A própria OMS afirma que o custo disso não é apenas humano: cada real investido em saneamento corresponde a quatro reais economizados em intervenções de saúde curativa, tais como hospitalização, medicamentos e cirurgias. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, em um cálculo otimista, apenas metade da população brasileira têm acesso à rede de esgoto.
Não é preciso ser especialista para saber que água potável e rede de esgoto andam de mãos dadas, demandando por políticas públicas contínuas de conscientização, fiscalização, ampliação e manutenção da estrutura. Saneamento ambiental, na sua concepção ampla, envolve muitas coisas que nós achamos que os impostos pagos são suficientes para garanti-las: abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, coleta e tratamento do lixo urbano, controle de insetos, pragas e roedores, higiene com os alimentos e com locais públicos como hospitais, escolas e meios de transporte. São todos itens potencialmente geradores de doenças epidemiológicas, que obviamente serão (ou já são) mais sentidas naquela parcela da população que tem menos recursos econômicos e acesso a serviços de saúde de qualidade.
Essa realidade é alarmante a tal ponto que se reflete no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) uma forma padronizada internacionalmente para avaliar e medir o bem-estar vigente em um país, levando em conta três grandes critérios: renda, escolaridade e saúde da população. O saneamento tem um peso considerável no IDH, especialmente quando este índice é ajustado pelo critério de desigualdade existente no País. Com isso, em 2010, a posição do Brasil no IDH despencou, levando-nos a sair do grupo de países com desenvolvimento humano elevado. Sendo realista, não parece mesmo nenhuma injustiça se as políticas públicas adotadas no País não priorizam o mais relevante: rede de esgoto, por exemplo, é um negócio que não dá visibilidade eleitoreira porque fica escondida junto com a tubulação. E que a população, de modo geral, aceita porque só reclama quem tem auto-estima e convicção de que merece algo melhor e pode exigir seus direitos.
Embora a seriedade dessa situação, não é verdade que nós, sociedade, nos preocupamos de fato; tudo isso não nos incomoda tanto assim. Para se ter um parâmetro, há algumas semanas a ONU, em um ato de apelo à humanidade e à decência, incluiu o acesso à água de qualidade e instalações sanitárias na lista dos direitos humanos universais. É preciso decretos vindos de outro lugar que não seja a nossa própria consciência para proteger o direito alheio à vida (sim, porque sem água potável não se vive!) frente à possibilidade de que os recursos naturais que a garantem se esgotem ou se concentrem nas mãos dos mais abastados?
Todos os dados oficiais citados, para cidadãos como eu, sem nenhum grande conhecimento de economia ou sanitarismo, resumem-se de modo bem simples: não é porque os índices de educação, saúde e renda são baixos no Brasil que o nosso IDH decaiu. Podemos pensar no sentido inverso: é porque o nosso desenvolvimento como seres humanos é precário e nossos princípios éticos escassos que não nos importamos com questões tão básicas quanto o fato de outro ser humano não ter acesso, sequer, a um copo de água potável. Quiçá, então, educação, saúde e salário decentes. Nós não estamos apenas falando da falta de saneamento ambiental. Estamos falando, sobretudo, da falta de outros "saneamentos" que se referem ao respeito à vida, quer seja ela representada por outro ser humano, pela natureza, animais ou recursos hídricos.
Saneamento (que em bom português significa reparar, eliminar falhas ou excessos) é algo que deveria começar dentro de cada um: eliminando o egocentrismo, a ganância, a discriminação, a falta de respeito a tudo o que já existia no mundo antes do nascimento de cada indivíduo e deveria persistir, no mínimo, preservado após a sua morte. Somos cada vez mais educados em uma cultura que nos leva a crer que a vida toda se resume a nossa própria existência; por isso, podemos depredar, usar e abusar porque senão o outro vai usufruir, e esse direito de posse é sempre nosso. Podemos jogar o nosso lixo no terreno do vizinho porque então o problema passa a ser dele; e ao puxar a descarga da nossa privada, fazer de conta que temos a convicção de que os resíduos serão drenados adequadamente e fingir que não vemos o esgoto a céu aberto, mesmo quando obrigados a pular por sobre o córrego de imundices que escoa pelas praias, rios e mares.
Não há seres humanos melhores ou piores a ponto de escolhermos quem terá acesso à água limpa e quem deve beber água lamacenta ou morrer desidratado. Também não acredito que a presença do polegar opositor baste para nos distinguir das espécies mais primitivas da nossa cadeia evolutiva. Nem a inteligência. Nem a linguagem. Nem o poder. Evolução envolve algo muito sutil, que tem a ver com o despertar da nossa consciência, levando-nos à responsabilidade pelo que construímos. Nas palavras de Ghandi "Nós temos que ser a mudança que queremos ver no mundo."
Como seres providos de consciência e afeto, há atitudes que simplesmente deveriam ser inerentes a nossa dignidade. Quando nos mostramos incapazes de praticá-las, com isso deixando de promover o cuidado com nosso universo e com as gerações futuras, destruindo lentamente a própria espécie, há muito para refletir sobre a essência humana. Afinal, que espécie animal defeca na água que irá beber mais cedo ou mais tarde?
Me. Tárcia Rita Davoglio Psicóloga; Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas; Doutoranda em Psicologia/PUCRS; Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS; Especialista em Gestão Empresarial/FGV; Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS; Especialista em Psicopatologia do Bebê/Universidade Paris XIII-França; Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes. Empresa Perfil – Gestão e Avaliações. Tel.: 51 8188-0733 E-mail: tarciad@gmail.com |