Célula a combustível microbiana transforma esgoto em eletricidade
Por Cristiane Rubim Edição Nº 73 - Junho/Julho de 2023 - Ano 13 -
A Célula a Combustível Microbiana (CCM) – em inglês, Microbial Fuel Cell –, está entre as tecnologias mais promissoras da Economia Circular
A Célula a Combustível Microbiana (CCM) – em inglês, Microbial Fuel Cell –, está entre as tecnologias mais promissoras da Economia Circular em Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs). Esse processo inovador no tratamento de esgoto e geração de energia consiste de um sistema bioeletroquímico que utiliza microrganismos, compostos por bactérias, que convertem a energia química de compostos orgânicos do esgoto em eletricidade. “Transforma resíduo, o esgoto, em uma fonte renovável de energia, o que significa uma mudança estrutural para atuar com efluentes que agrega valor” – afirma Vitor Cano, pesquisador e pós-doutorando de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EP-USP).
O sistema bioeletroquímico utiliza um grupo de microrganismos, denominado exoeletrogênico ou eletroativo, que atuam como biocatalisadores em reações redox pela oxidação de substrato biodegradável. “Os integrantes combinam sua respiração com uso de um aceptor de elétrons sólido no exterior de suas membranas. Esse processo, chamado de transferência extracelular de elétrons, que permite a produção de eletricidade na CCM” – explica.
O metabolismo convencional dos microrganismos baseia-se em todas as reações que ocorrem no interior da membrana plasmática. “Enquanto nos sistemas bioeletroquímicos, é possível ter acesso ao fluxo de elétrons da respiração microbiana ao inserir elemento externo ao metabolismo. Assim, o sistema converte a energia química de substrato biodegradável em fluxo de elétrons, ou seja, em eletricidade” – ilustra.
Em ambientes naturais sem oxigênio ou outros aceptores de elétrons solúveis, caso do nitrato, nitrito, sulfato etc., esses microrganismos, como bactérias do gênero Geobacter e Shewanella, utilizam o ferro em estado sólido no solo como aceptor de elétrons em sua respiração. “Nos sistemas bioeletroquímicos, o ferro é substituído por um eletrodo que receberá os elétrons do processo de respiração das exoeletrogênicas” – menciona Vitor Cano. O eletrodo pode ser uma haste de grafite, tecido de carbono, carvão ativado granular, aço inoxidável, entre outros.
Eletrodos usados em CCM:
Fluxo de elétrons
O fluxo de elétrons pode ser usado para diferentes fins no sistema: alimentar dispositivo eletrônico, gerar Gás Hidrogênio (H2), capturar carbono etc., o que definirá a nomenclatura do sistema bioeletroquímico. Quando a eletricidade gerada alimenta dispositivos eletrônicos, por exemplo, denomina-se o sistema de CCM.
Nesse caso, segundo Vitor, as reações bioquímicas são catalisadas pelas exoeletrogênicas que crescem na superfície de um eletrodo, chamado ânodo, em condição anaeróbia. Com a degradação de compostos orgânicos do esgoto, são liberados prótons e elétrons. Os elétrons produzidos pela oxidação do substrato orgânico são transferidos pelo microrganismo para o ânodo e migram para o cátodo através de um circuito externo. É neste circuito externo que a eletricidade é obtida.
Em uma CCM típica, diz Vitor, o ânodo e o cátodo são separados por um sistema eletrolítico seletivo de transferência de cargas, como uma Membrana de Troca Catiônica (MTC). Os prótons (H+) gerados na degradação dos compostos orgânicos migram do ânodo para o cátodo através da MTC. No cátodo, os prótons e elétrons são consumidos por um aceptor de elétrons, normalmente, oxigênio, em uma reação de redução, fechando o circuito.
“O fluxo de elétrons entre o anodo e o cátodo e a diferença de potencial entre as enzimas respiratórias (citocromos) dos microrganismos no ânodo e a reação de redução no cátodo geram a corrente e a tensão elétrica, respectivamente” – aponta. Segundo ele, apesar de a câmara anódica ser anaeróbia, diferentemente da metanogênese, os produtos finais das reações bioquímicas em uma CCM são H2O e CO2, como mostrados nas reações a seguir:
Ânodo: C6H12O6 + 6H2O → 6CO2
+ 24H+ + 24e-
Cátodo: O2 + 4H+ + 4e- → 2H2O
Na prática, a tensão máxima teórica obtida em uma unidade de CCM é de pouco mais que 1 V.
“Por isso, de forma similar ao que ocorre com as células eletroquímicas, um sistema de CCM deve ser composto por várias unidades ligadas eletricamente em série ou em paralelo para aumentar a tensão ou corrente, respectivamente” – ressalta Vitor.
As CCMs são operadas como reatores biológicos, mas contam com fenômenos da eletroquímica. As CCMs podem ser automatizadas para otimizar seu desempenho via:
• Processos biológicos, modular a atividade biológica para aumentar as taxas de reação;
• Processos eletroquímicos, geração de corrente por ciclos de carga e descarga elétrica ou alterações no circuito externo;
• Ou, idealmente, combinar os dois tipos de processos.
Ao buscar maior eficiência de conversão de certos compostos em eletricidade, a automatização aumenta apenas a eficiência de tratamento, apenas a geração de energia ou os dois.
Potencial
As pesquisas sobre geração de energia de sistemas bioeletroquímicos ganham destaque mundial. No Brasil, essa área ainda é pouco explorada. Devido à urgente necessidade de ampliar os serviços de saneamento e de energia, tem enorme potencial. “A infraestrutura de saneamento da maioria dos países desenvolvidos, já implementada há décadas, passa por modernização para atender a um novo paradigma baseado na Economia Circular. No Brasil, em muitos casos, é possível partir direto para infraestrutura alinhada com modelo cíclico de saneamento, recuperando subprodutos, como energia e nutrientes” – analisa Vitor.
Ainda que hoje a CCM não esteja pronta para escala real, é importante que o Brasil invista nessa tecnologia e se coloque em liderança na agenda de sustentabilidade. “Desenvolver uma tecnologia inovadora como a CCM para tratamento de esgoto tem como um dos objetivos principais proteger a qualidade de água ao reduzir a carga de matéria orgânica e nitrogênio lançada em corpos d’água. Sua futura utilização em novas estações de tratamento contribuirá para a sustentabilidade do setor de água e saneamento, além de ser atrativa por reduzir os custos energéticos do tratamento” – pontua o pós-doutorando.
A CCM contribui para uso eficiente de fonte energética limpa, barata e confiável de produção constante, renovável e disponível, mas ainda pouco explorada: as águas residuárias. “Se novos avanços levarem à geração de energia da CCM não apenas para suprir a demanda de uma ETE, mas produzir também energia excedente, ampliará o acesso da população à energia elétrica, desde centros urbanos até assentamentos isolados. Colaborará para diversificar a matriz energética com fonte limpa, além de eliminar a emissão de gases do efeito estufa de efluentes lançados no ambiente sem tratamento” – destaca Vitor.
Recentes pesquisas
A área de bioeletroquímica não é tão nova – a primeira observação de corrente elétrica gerada por atividade bacteriana data de 19111. Somente na década de 1980 foi obtida quantidade de energia que permitisse vislumbrar aplicações práticas. Os principais estudos que contribuíram para compreender o processo e que se dedicaram ao tratamento de esgoto foram realizados apenas na década de 1990. A partir daí, aumentaram muito as publicações nessa área.
Antes de 2000, eram publicados menos de 50 artigos/ano sobre CCM. Em 2008, pulou para mais de 100 artigos/ano e, desde 2017, ultrapassa 600 artigos2. Segundo Vitor, ainda há muitos aspectos da atividade microbiana em CCMs em tratamento de efluentes que os pesquisadores não entendem bem.
Os custos dos materiais da CCM são altos e a geração de eletricidade ainda não é elevada o suficiente para compensá-los e ser competitiva comparada à digestão anaeróbia convencional, por exemplo. “Por esses motivos, grande parte dos estudos se dedicou a desenvolver novos materiais mais eficientes e de menor custo e conceber novas configurações de CCM com maior densidade de potência – produção de energia por volume de reator ou área de eletrodo” – relaciona Vitor Cano.
No seu projeto de doutorado, foi desenvolvido novo desenho de CCM em formato tubular para otimizar a relação de energia e volume, utilizando eletrodos de materiais de baixo custo, como aço inox e carvão ativado granular3.
Novas aplicações
Com os avanços nessa área, surgiram novas aplicações: sistemas bioeletroquímicos como biossensores que monitoram a qualidade da água em locais isolados – a geração de corrente elétrica é associada ao nível de poluente no corpo d’água; degradação de compostos orgânicos específicos ou recalcitrantes; conversão de metano dissolvido em eletricidade; combinação com wetlands construídos; recuperação autossustentável de nutrientes, entre outros.
Na recuperação de nutrientes do esgoto, como nitrogênio e fósforo, Vitor cita que existem diferentes abordagens: desde a formação de estruvita do aumento de pH nas imediações do cátodo da CCM, o que favorece o stripping de amônia – troca entre líquido e gás; até a transferência e a recuperação de íons amônio da câmara anódica para a catódica pela diferença de cargas entre o ânodo e o cátodo.
Outro campo inovador para o tratamento de esgoto que avança nos últimos anos é o da incorporação de reações do nitrogênio à CCM. O tratamento biológico convencional para remover nitrogênio é baseado na nitrificação seguida de desnitrificação. Vitor explica que a nitrificação demanda de 4,57 g O2 por g N-NH4+, o que resulta em altos gastos com eletricidade na aeração. A desnitrificação heterotrófica requer também fonte de carbono orgânico, aumentando o custo do tratamento com a adição de carbono externo ou recirculação interna do efluente.
Amônia
Desde 20094, há evidências de utilizar amônia para gerar eletricidade em sistemas bioeletroquímicos. “Como é um campo novo, aspectos mais específicos de oxidação de amônia com geração de corrente elétrica ainda são pouco compreendidos” – comenta Vitor.
Nessa área, o estudo da atividade microbiana com técnicas de Biologia Molecular atingiu avanços nos últimos tempos. Diferentes grupos microbianos comuns em reatores biológicos de ETEs são estudados em CCMs, como as bactérias de nitrificação5 ou anammox6. Os resultados são bem animadores, segundo Vitor.
Em estudo recente publicado por Vitor de uma colaboração entre a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e a Universidade de Columbia (EUA), foi demonstrado que grupos microbianos oxidaram amônia com diferentes níveis de geração de corrente. “A partir de nossos resultados, comparados à nitrificação convencional, projetamos economias de energia de 7% até 44% ou balanço energético positivo de até 475%, dependendo da composição do biofilme no ânodo e parâmetros de operação7” – revela.
No caso de acúmulo de nitrito ou nitrato no efluente, ainda é possível realizar uma desnitrificação bioeletroquímica, na qual o doador de elétrons é o próprio eletrodo da CCM, não precisando fonte externa de carbono orgânico. “O controle sobre o fluxo de elétrons na CCM abre enorme janela de possibilidades de processos a serem aplicados para melhorar o desempenho de ETEs” – afirma o pós-doutorando.
Impressão 3D
Vitor Cano desenvolve pesquisa de pós-doutorado e orienta alunos nessa área no Núcleo Anaeróbio de Tratamento e Utilização de Resíduos, Efluentes e Nutrientes do Laboratório de Saneamento da Escola Politécnica da USP. Os projetos do grupo estão alinhados a desenvolver processos inovadores para ETEs sustentáveis. “Na área de bioeletroquímica, confeccionamos CCMs de impressão 3D com desenhos que atendam às necessidades dos projetos de pesquisa e as utilizamos para compreender aspectos da atividade microbiana para otimizar a geração de eletricidade de amônia8 e de compostos orgânicos em águas residuárias” – comenta.
Resultados
A CCM ainda possui grau de maturidade tecnológica mais baixo do que outras tecnologias, caso da digestão anaeróbia, há décadas aplicada em ETEs. Vitor conta que apenas em 2004 se demonstrou em laboratório que a CCM poderia ser aplicada para tratamento de esgoto doméstico com desempenho satisfatório de geração de eletricidade, 26 mW por m² de eletrodo.
Já em 2014, segundo ele, uma CCM em escala piloto (250 L) atingiu até 0,057 W/m2 e remoção de DQO de 79%, com consumo energético de 0,5 kWh/m3. “Desde essa época, diversas tentativas de ganho de escala tiveram dificuldades devido à baixa condutividade elétrica do esgoto e configurações de CCM com grandes dimensões que levavam a altas perdas energéticas” – ressalta o pesquisador.
Por conta disso, o ganho de escala da tecnologia migrou de eletrodos de grandes dimensões para modularidade com várias unidades de CCM de menores dimensões conectadas em série. Um estudo recente, de 2021, citado por Vitor, reportou um sistema de CCM com 64 unidades com volume total de 1.000 L, remoção de DQO entre 90% e 95% e geração de energia de até 0,06 kWh por m³ de esgoto tratado – obtendo eficiência energética de até 12%.
Um outro estudo recente apresentou CCM tratando esgoto doméstico composta por 17 anodos, somando o volume total de 850 L, densidade de potência de 0,043 W/m² e remoção de DQO em 50% . “Apesar de quantidade de energia extraída pelas CCMs ainda ser inferior ao que está teoricamente disponível no esgoto, é preciso aprimorar a tecnologia para implementá-la em escala real. A retomada de estudos com CCM em escala piloto, com avanços em relação às dificuldades reportadas na década de 2010, é bem animadora” – avalia Vitor Cano.
Desafios
Apesar de as ETEs terem altas taxas de consumo de energia, o esgoto tratado possui energia suficiente para alimentar diversas ETEs. “No entanto, converter de forma eficiente a energia química dos compostos orgânicos dissolvidos no esgoto é ainda um desafio” – adverte Vitor Cano.
Uma abordagem é produzir eletricidade de motores movidos a metano gerado em digestores anaeróbios. “O metano produzido pela digestão anaeróbia possui 80% da energia potencial original dos compostos orgânicos dissolvidos no esgoto. Devido às perdas na conversão do metano em eletricidade, estima-se eficiência de conversão final de 30%” – aponta.
Na CCM, como a geração de eletricidade ocorre dos compostos orgânicos dissolvidos, parte das perdas pela digestão anaeróbia é evitada. “Por isso, seria possível atingir eficiências energéticas mais altas, o que de fato é observado em estudos em escala de laboratório” – diz.
A CCM não demanda tratamento de biogás, em condições ideais, o produto gasoso final é composto majoritariamente por CO2. “Em comparação com ETEs convencionais, não tem gasto energético com aeração para oxidar matéria orgânica e há baixa taxa de produção de lodo, reduzindo custos de seu tratamento e disposição final” – compara o pós-doutorando.
Contato
Vitor Cano: pesquisador e pós-doutorando de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EP-USP).
1 Potter, M. C. Proceedings of the Royal Society B, vol. 84 (1910), p. 260.
2 Khudzari et al (2018). Bibliometric analysis of global research trends on microbial fuel cells using Scopus database. Biochemical Engineering Journal, v. 136, 51-60. https://doi.org/10.1016/j.bej.2018.05.002.
3 CANO, Vitor et al. Electricity generation influenced by nitrogen transformations in a microbial fuel cell: assessment of temperature and external resistance. Renewable and Sustainable Energy Reviews, v. 139, p. 01-14, 2021
4 He et al. Electricity Production Coupled to Ammonium in a Microbial Fuel Cell. Environ. Sci. Technol., 43, 9, 3391–3397, 2009.
5 Vilajeliu-Pon et al. Microbial electricity driven anoxic ammonium removal, Water Research, 130,168-175, 2018. https://doi.org/10.1016/j.watres.2017.11.059.
6 Shaw, D.R., Ali, M., Katuri, K.P. et al. Extracellular electron transfer-dependent anaerobic oxidation of ammonium by anammox bacteria. Nat Commun 11, 2058 (2020). https://doi.org/10.1038/s41467-020-16016-y
7 Cano V, Nolasco MA, Kurt H, et al., (2023) Comparative assessment of energy generation from ammonia oxidation by different functional bacterial communities. Science of The Total Environment 161688. https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2023.161688
8 https://www.youtube.com/watch?v=1QlAqXmlr60&t=6s
9 Liu H, Ramnarayanan R, Logan BE (2004) Production of Electricity during Wastewater Treatment Using a Single Chamber Microbial Fuel Cell. Environmental Science & Technology 38:2281–2285. https://doi.org/10.1021/es034923g
10 Feng Y, He W, Liu J, et al., (2014) A horizontal plug flow and stackable pilot microbial fuel cell for municipal wastewater treatment. Bioresource Technology 156:132–138. https://doi.org/10.1016/j.biortech.2013.12.104
11 Blatter, M., Delabays, L., Furrer, C., Huguenin, G., Cachelin, C.P., Fischer, F., 2021. Stretched 1000-L microbial fuel cell. Journal of Power Sources 483, 229130. https://doi.org/10.1016/j.jpowsour.2020.229130
12 Rossi R, Hur AY, Page MA, et al., (2022) Pilot scale microbial fuel cells using air cathodes for producing electricity while treating wastewater. Water Research 215:118208. https://doi.org/10.1016/j.watres.2022.118208